segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Utopia (3)

O teu silêncio gela-me a alma. Eu sei. O tempo está a chegar ao fim. É a vez do verdadeiro tempo sem tempo. Tudo o resto não passou dum aguaceiro que só deixou ilusões pelo caminho. Não estou revoltado. Apenas desiludido, acredita. Agora que o meu saco de missões se esvazia, é tempo de balanço e sinto que não  consegui cum­prir, embora não saiba muito bem o que tinha para cumprir.
É natural que medite se valeu a pena passar por este mundo em convulsão onde ninguém deu pela minha presença. Se pudesse revoltar-me, era essa a mi­nha revolta.
Que fiz de útil?, que fiz de útil sem pensar primeiro nas minhas conveniências?
Ainda há pouco "jogava xadrez" com damas de negro e amazonas a quem avisava para fugirem de mim, ao mesmo tempo que lhes pedia para so­nharem comigo. Fiz viagens no tempo sem tempo, sonhei, de olhos bem abertos, com mulheres de vermelho, comi morangos silvestres, amei olhos tristes.
Mas ajudei quem devia ajudar?
Talvez tivesse ajudado quem quis ajudar. O que é diferente.
Amei quem devia amar?
Só perguntas. Nenhuma resposta.
Chego triste ao estuário de uma vida obsessivamente gasta na tentativa vã de agradar ao meu modelo concecional. Sempre insatisfeito comigo e com os ou­tros. Sem ser livre para poder justificar todos os erros cometidos. Todo o meu egoís­mo.
O teu olhar não quer dar razão às minhas palavras.
Que faltou fazer para en­contrar o "caminho"?
Fui assim tão medíocre?
Ah!, esses olhos... não sei ler neles!
É certo que perdi-me em meandros de rigor e incertezas enormes. Nem sequer tirei partido da força de intuição quando o poeta desceu à praça para seduzir a mulher que o homem tentava conquistar.
Foste tu quem afastou a Madalena (1)?
Depois acomodei-me no lago de águas paradas. Aí fiquei. Esperando o crepúsculo. E ei-lo. Tento agora saltar de beiral em beiral procurando, desesperadamente, a andorinha que há de vir amanhã.
Não vem?
Não vem. Acredito. És a única testemunha. Talvez a VERDADE. Mas foste cúmplice. Não me avisaste. Deixaste que as estrelas se apagassem, uma a uma, até que ficou aquela que nunca foi a minha estrela. Antes um buraco negro me devorasse e pusesse fim à minha solidão.
O teu olhar não quer admitir que fui o único culpado.
Queres dizer que... fo­mos os dois culpados?, tu e eu?
Já não é tempo de recuar. Podias ter ensinado a este pobre mortal que havia um outro caminho. Tive que pagar com ódio, paixão, vingança e arre­pendimento todas as lições de viver porque não quiseste iluminar os meus olhos cegos de tanto seguirem a estrela errada.

Senhora!, porquê?
O filho que tens ao colo já sabia o seu destino. Sofreu como ninguém. Sofreu por todos nós. Mas em vão. Eu também vou sofrendo na minha dimensão. Embo­ra não tivesse feito nada, acho que fiz o que me deixaste fazer. E se Deus não morou dentro de mim foi porque não quis.
Quem somos nós, senão simples mor­tais?
Quem me dera estar nesse quadro que vejo na minha frente e ser o MENINO que tens ao colo, a olhar, com doçura, o mundo agreste que o rodeia. Depois, descobrir que o meu rio ainda não chegou à foz e adormecer, suavemente, na utopia de acordar amanhã…


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