terça-feira, 14 de agosto de 2018

Idealismo


A mesa do café, os livros, o tabaco, as cadeiras, os outros. Todos estavam comigo. Acontecia não dar por eles. Os meus olhos debruçavam-se sobre as folhas e viajavam pelos domínios dum mundo de símbolos e de labirintos. Algumas vezes olhavam para fora, pelas poucas vigias de que dispunham. Mas logo o egoísmo da transcendência os arrastava para a caminhada interrompida. Desse modo os meus olhos não contemplavam a transcendência do além limite. Para lá das folhas de estudo, prisioneiros dum mundo impiedoso, lançavam-se numa corrida não objetivada. Queriam fugir mas a destreza da noite escondia-os. A negação tomava proporções de queda no caos, mas logo vinha até eles o mundo dos símbolos e dos labirintos.
A mesa do café, os livros, o tabaco... protetores dos transviados... todos eles voltavam a estar comigo. Milénios e milénios de frações de vida eram completados e consumiam-se na clepsidra sobre a mesa.
Os livros, o tabaco... todos estavam comigo. E eu sempre com eles. Só. Acompanhado de maneira a estar só.
Mas um dia tive um sonho. Sonhei contigo. Atravessavas as vigias do outro mundo e caminhavas para mim. Trazias o sorriso da vida. Eras o sorriso da vida.
Finalmente caía por terra o egoísmo da transcendência. A utopia caminhava para a luz...
 
Vou tentar fazer uma coisa que nunca fiz. Voltar ao passado não é possível. Trazer uma cópia exata do que aconteceu enquanto estive a escrever na sebenta esta pequena prosa poética também é impossível. Lembrar-me das pessoas que estavam presentes, nem pensar nisso. Lembrar-me onde estava naquela noite e como me sentia, é o melhor que posso fazer...


 
 
Quando cheguei ao café Chiado já passava das nove horas. Não muitos minutos, mas seguramente passava das nove porque o jantar na pensão da "Aninhas-passa-fome" (1) era às oito e não demorava muito. Jantar, ir à casa de banho, depois ao quarto e vestir um casaco seria coisa para demorar meia hora, quarenta e cinco minutos. Mais conversa menos conversa com o meu colega de quarto, que era da PIDE e eu não sabia, de certeza que demorava mais que dez minutos para percorrer o caminho da travessa de São Sebastião, à rua da Escola Politécnica, até à rua Garrett.
O ambiente no café era sufocante. Quanto ao barulho, mais um burburinho constante que outra coisa, disso não se falava. Foi a primeira impressão. Mas já estava a entrar. Precisava de estudar Matemáticas Gerais e o hábito de estudar em cafés barulhentos não me incomodava. Portanto, não voltei para trás.
Nessa altura não ligava nada aos signos, mas devo ter-me comportado com um Escorpião que, antes de avançar, observou com cautela, todo aquele ambiente envolvente que o esperava. Feito o exame preliminar, escolhi uma mesa mais para o interior. Acho que se subiam quatro ou cinco degraus, pois lembro-me de ter ficado a um nível superior ao do patamar onde se situavam as primeiras mesas e o balcão.
Fiquei voltado para a porta. Uma certeza quase absoluta, pois sempre procedi assim. Ontem e talvez ainda hoje (que dizes, Mário?)
Não tardou que tivesse o café na mesa e também o copo de água da ordem. Bebi-o de dois ou três goles. Não me lembro se chegou a escaldar. E, bebido o café, abri a sebenta e o caderno das práticas. Bree! Limites de sucessões. Necessitava de muita engenho e arte para aplicar certos artifícios que, só eles, me levariam a bom porto. Quanto ao ruído, parecia estar uns decibéis acima do habitual. Ou então era eu que não tinha vontade de pegar o touro pelos cornos.
Procurei nos bolsos do casaco o maço de cigarros e a caixa de fósforos. Não eram os cigarros que me ajudavam a concentrar-me no estudo. Era mais uma necessidade de dar um pontapé de saída, expressão usada na gíria futebolista para o jogo começar. Nessa altura fumava, não por vício, mas também não sei porquê. Nem interessa saber. Aliás, não fumava mais que seis cigarros por dia. Quando me arranhavam a garganta estava uma semana ou mais sem fumar. E justificava-se porque assim podia cantar os fados de Coimbra e as bonitas canções latino-americanas da época.
Peguei na esferográfica e copiei para a sebenta o primeiro exercício para resolver. Nada feito. O olhar perdeu-se em frente, num tipo patusco que não parava de rir para dentro. Não sei explicar melhor, mas ria-se quase a soluçar.
Estaria a lembrar-se de uma anedota?
O riso, algo descontrolado, durou ainda mais uns segundos. Ia então tentar resolver aquele exercício de limites.
O homem ficou muito sério. Olhava na minha direção, mas o olhar parecia passar para além de mim. Acho que tinha uma mão a apoiar o queixo.
Olhei para o copo, ainda cheio de água. Era curioso. Se não tivesse pedido, certamente que tinha sede.
Atirei-me ao trabalho e resolvi o primeiro exercício sem dificuldade. Faltava conferir o resultado. Os passos estavam corretos mas, por vezes, havia surpresas. Dito e feito. Era bruxo ou isso. Qualquer coisa estava errada. Ou então a solução. Ingénuo. Raramente as soluções tinham erros.
Outra vez o homem a gargalhar para dentro, como se tivesse soluços. Precisava de concentrar-me no trabalho e estava difícil naquela noite. Não podia dirigir-me à mesa do homem e dizer-lhe que não havia mais anedotas para ninguém. Pois não.
Foi então que o observei melhor. Cabelo comprido, encaracolado. Barba cerrada, por fazer. Casaco castanho maior que a figura. Gravata vermelha, com padrão. O olhar... o olhar não enganava. O homem não estava a lembrar-se de anedotas. Ou então lembrava-se daquelas que não conhecia.
«Coitado.» Pensei.
Qualquer coisa não jogava bem nele. Tinha a certeza. Mas nada podia fazer por ele. Não era médico, nem feiticeiro, nem sequer aprendiz. Tentava concentrar-me e nada. Não conseguia. E com toda aquela distração já eram dez horas.
Esmaguei a ponta do cigarro no cinzeiro. Meio cigarro. Tinha fumado meio cigarro. Nada me ajudava na concentração.
Foi então que entrei noutro mundo. O meu mundo de escape.
Virei a folha da sebenta onde estava o exercício errado e comecei a escrever.
"A mesa do café, os livros, o tabaco, as cadeiras, os outros..."
Só a prosa me fazia abstrair do desgraçado do homem que alternava momentos de riso descontrolado com o semblante mais sério que se podia imaginar. Aquilo sim, era o meu mundo. Já não estava no café. Nem sabia onde estava. Tinha ganho asas e voado. Feliz de voar. De deixar soltar-se a imaginação e ditar à esferográfica a sucessão de palavras que fluíam do pensamento. Aqui e ali um atropelo. Uma necessidade de riscar para logo dar seguimento ao texto. Tudo muito linear, aparentemente. Só quando parava a interpretar a prosa, que queria que fosse poética, é que acenava com a cabeça, revelando alguma incompreensão no que acabava de escrever.
A negação tomava proporções de queda no caos, mas logo vinha até eles o mundo dos símbolos e dos labirintos.

Caos. Símbolos. Labirintos. Mas estava a pôr-me na pele do desgraçado do homem que ria a soluçar!
Coisa estranha. Não resisti à tentação de voltar a olhar para o homem.
«Oh! Foi-se embora...»
Consultei o relógio. Quase onze horas. Nem sequer aquela estranha prosa estava terminada.
Mas então... uma dúzia de linhas...?
Tanto tempo para escrever umas linhas que não entendia!
Chamei o empregado.
«Deseja mais alguma coisa?»
«Obrigado. Só quero pagar.»
E saí do café. Fugindo de todas aquelas mesas com pessoas que não conhecia e que falavam de coisas que não ouvia. Do ambiente de fumo. Da água que ficou no copo. Da chávena de café, vazia. Do ruído. Do homem "a rir para dentro e a seguir ficar sério" que já não estava no café. Do estudo que não rendeu naquela noite. Do outro eu que talvez estivesse sentado comigo à mesa do café. 
Cheguei à rua da Misericórdia, que subi. Pouco depois estava no miradouro do jardim de São Pedro de Alcântara. De dia tinha uma vista magnífica. Ao anoitecer...
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E foi aí que me lembrei do fim da prosa. A procura de algo que deitei fora e que nunca mais teria na vida...
 
"Mas um dia tive um sonho. Sonhei contigo. Atravessavas as vigias do outro mundo e caminhavas para mim. Trazias o sorriso da vida. Eras o sorriso da vida.
Finalmente caía por terra o egoísmo da transcendência. A utopia caminhava para a luz..."

Rua da Escola Politécnica. Rua da Imprensa Nacional. Não encontrei o mínimo obstáculo pelo caminho. 
Pouco depois estava em casa. Para mais uma inevitável e reparadora noite de sono. Um acordar lento pela madrugada e um começar de novo, longe do sonho que deixei fugir.

(1) A pensão da Aninhas-morte-lenta

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