segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Quem és?



«Tu podes flutuar. Eu não.»
Ela está a flutuar, mas não a vê. É cego para o seu mundo. Se ao menos conseguisse receber um sinal! Mas não. Teima em não aparecer. Só sonha com vingança. 
Que fez ele? 
Os momentos que passaram juntos foram belos. Depois, vieram os equívocos. Os desvios. Alguém meteu-se entre os dois e ela sabe também quem foi, mas não pode vingar-se de quem agiu só por amor. O amor é uma coisa maravilhosa quando é correspondido. Ninguém teve culpa. Aconteceu.
Mas será mesmo ela...?
Procura no labirinto um nome, um indício. Sente-se exausto. A coisa não quer revelar-se. Prefere mostrar-se em cópias, atrás dos olhos de outras mulheres. Em vão tenta alcançá-la com outra forma de perceção. Tudo o que não é matéria, ou que não possa ser materializado, não consegue ver. Nem plasmas, nem fluidos.

Mas ela existe. Existe nos seus tormentos, na sensação de culpa.
Quer senti-la e apenas pressente que aquilo que sente é ela. Está nas suas mãos, ao sabor da sua vontade, dos seus desejos, mas sabe que não lhe vai fazer mal. Apenas quer fazer o mesmo jogo que ele fez com ela. Em poucas palavras: vingar-se.
«De que morreste? Tumor no fígado? Coma diabético? Todas as doenças que sinto, és tu quem mas transmite. És aquilo que se chama vulgarmente um encosto. Não posso ir ao teu encontro, estrela.»
Nada se mexe à sua volta. Está a especular sobre algo metafísico. Ela não existe. É já tempo de fazer a desmontagem. Estava enganado quando julgava que a ouvia chorar. Mentira. Infelizmente nem sequer existe. Se existisse, aparecia aos seus olhos tal como era. Não na folha de papel que mesmo agora viu a flutuar lá fora. Nada mais existe para além da realidade que os sentidos alcançam.
«Quem és tu? Estou aqui à tua espera. Qualquer que seja o teu problema, vou tentar resolvê-lo. Mas preciso da tua ajuda. De acordo?»
«...»
«O teu silêncio gela-me a alma. Continuas à minha volta, a baralhar-me os pensamentos. Tentando torná-los obsessivos. E eu continuo sem saber como chegar a ti.»


Vem ...
Não tenhas medo. Rompe a escuridão do teu mundo e desce ao meu que te aguarda. Abre os braços e materializa-te no voo planado da gaivota que é o nosso símbolo. Vem num rasto de azul. Dá-me um sinal. Não vês que estou preso? Tenho as pernas doentes. Pesam-me. Não posso voar. Galgar o espaço ao teu encontro...
Vem. Estou à tua espera. Só. Entre ruínas que não sei reconstruir. Vem desamarrar as grilhetas. O dia a dia mata-me. Quero ser outro. Começar a obra que nem projecto teve. Viver, no azul, a lenda da rapariga que nunca vi mulher.
Ontem não estavas no sitio do costume, por onde vias o dia e a noite.
Será que nunca mais te verei?
Voa baixo. No azul. Ensina-me a ver o teu mundo. Corta as grilhetas que me dilaceram a alma.
Não tenhas medo, estrela. Vives na noite... Eu vivo no dia.
Vem pelos anos-luz do impossível, para voarmos juntos no azul infinito...

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