segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Estávamos à beira-mar


Adormeci à beira-mar e não sei há quantas horas estou aqui, nesta noite estrelada, fria. Esfrego os olhos, incrédulo. Não pode estar a acontecer. Espero a onda na praia dos desencontros. Longas horas, sonhos que não acabam, sonhos que nunca tive. Ausência. Infinito. Absurdo. A onda está para lá da linha do horizonte que não vejo. Entretanto veio a noite. Noite estrelada que nem sequer é aquecida por um riscar efémero de uma estrela cadente. Quem me dera que o desejo se realize. Mas que desejo? Já não sei o que é desejar. Desgraçadamente, os meus sonhos nunca significaram que tenha o mundo a meus pés porque o mundo és tu e estás inacessível. Assustas-te ao mínimo toque no braço, mesmo que pareça involuntário. Nem sequer me olhas de frente. Tens medo de assumir. Até te assustas com a minha sombra!
Piedosa mentira para quem não mente. Mas sabes...? Não vou desistir. Quero amar-te sempre! E está espelhado nos nossos olhos que falam com mais intensidade que o silêncio das palavras, já que falar-te de amor é proibido porque tens medo de não resistires à verdade que nunca esteve 

tão próxima.
Como adivinhei as palavras que trazem os teus olhos?
Tenho o dom de adivinhar. De vencer. De saber perder. De perdoar ou castigar. De destruir. Destruir-me... até renascer das cinzas. E tu também, acredita. Já fomos cinza que se fundiu no fundo do mar, até que a força traiçoeira das correntes nos separou. Ao contrário do que pensas, já acertei no cavalo certo e deixei ir o cavalo errado. Recordas-te? Claro que não. Mas isso foi noutro tempo e noutro espaço. Agora voltámos. Os eternos. Reconheci-te sem te ver. O mar. Sim, foi o apelo do mar que nos trouxe de novo ao encontro um do outro.

Estavas sentada à beira-mar e parecia que escutavas a canção que as suas ondas traziam e levavam. O teu olhar alongava-se na distância, para lá da linha do horizonte, à espera de uma maré que já te tinha esmagado uma vez. Mesmo assim, teimavas em esperar. Se soubesse o que era ter inveja talvez gostasse de ser como ele. Um homem de sorte que teve a pouca sorte de não te amar. Gostaria mesmo. Porque eu gosto de ti, como tu gostas de mim. Ou melhor: amo-te, como tu dizes que não me amas. Palavras. Só palavras. Porque logo a seguir confessas que não gostas de dizer “nunca”. Era mais fácil para mim (lembras-te quando foi?) se tivesses dito “nunca”.
Nada aconteceu por acaso. Vem ter comigo. Senta-te aqui ao meu lado. Repara como o mar calou os seus rugidos e parece observar-nos, muito calmo. Ou melhor, observá-los. Sim, os dois. Não tenhas medo. Encosta-te a mim. Isso. Tens a pele macia. Não fujas ao contacto. Deixa acontecer. Não tenhas medo porque somos virtuais.
Já te esqueceste que nos conhecemos no virtual?
Parecias inacessível. Só jogavas o jogo pelo jogo. E eu jogava o jogo, ao mesmo tempo que magicava como serias. Alta. Baixa. Gorda. Esbelta. Ah... no sussurro das poucas palavras que trocámos, conheci-te. Valia a pena irmos para a grande tela virtual. Mas isso é outra história. Dá-me um beijo. Assim. Que pena não ter tempo para te abraçar. Porquê?, poderias ter dito. Muito simples: somos meros espetadores...
O outro tem uma mulher a seu lado. Já viste bem? Que sorte! Diria que estão apaixonados. Oxalá. Era muito bom para mim e também para ti. Mas adiante. Não estás a vê-los? Tens razão. Não os vejo à nossa frente, nem me lembro das palavras que trocavam quando eu era ele. Uma coisa é certa. Poucas. Poucas palavras. Os pensamentos ocupavam o resto do tempo em que elas não estavam presentes. Talvez comunicassem por telepatia. Ou com os olhos. Como eram os seus olhos...? Tinha uns olhos definitivamente irresistíveis. E como se chamava ela? Ah... colocaste os dedos sobre a minha boca. Tens razão. É um amor secreto. Até porque eles eram só amigos. Já me esquecia.
Aproximei-me e pude então vê-la melhor. Sim, os olhos eram castanhos. Irónicos, por vezes; carentes quando lhe pediam beijos. Que esperava? Estavam muito juntos. À distância de tudo.
«Vá... beijem-se! Tanta cerimónia!»
Era bom para mim. Não ia perder mais uma oportunidade. Talvez acabasse uma vez por todas esse luto longo e irracional. Talvez que me visse doutra maneira. Talvez...
Ouviam música. Cantavam. Estavam encantados como se um sortilégio os envolvesse. Depois, falaram em fado. O fado que ouviam? Entendi que talvez fosse destino. Até porque disseram que eram duas almas gémeas desencontradas dos destinos que perderam. Não compreendia. Estavam ali, naquele sofá, muito juntos, esquecidos do tempo que era e do tempo que foi. Inevitável o que aconteceu depois. Não me lembro das palavras que ele lhe disse e da resposta que ela deu. Só me lembro do silêncio que os envolveu. A música já não se ouvia. Tempo de mudança, pensei.
Retirou a mão do ombro dela e desceu-a ao longo do braço esquerdo, ao encontro da outra mão que estava muito próxima. Então, vi. Ele acariciou-lhe as unhas. Esperava uma resposta. E ela respondeu. Senti-me a mais e saí da sala, em bicos de pés, sorrateiro, não fosse o ruído da minha saída perturbar o encantamento que os envolvia e que tanta esperança me trazia!
Já na rua, tentei lembrar-me do poema que não escrevi. Como era? Não o vou recordar porque tem a agravante de não passar dum plágio dum poema sem chama. Antes não fosse, porque o amor entre os dois podia ser um espelho desse poema. E ele podia voltar e roubar-me de vez o verdadeiro poema que eras tu.
Mas o outro não era eu?
A noite está fria e a onda ainda não chegou.
Será que estou na praia errada?
Lá estou eu a ser um convencido. A pensar que sei tudo. A acreditar que tenho a força do Leão e o fogo do Dragão. A dizer que o outro era eu, porque o que julgava ser, continua sentado, à beira-mar, paciente, sonhando com a onda de amanhã e não acreditando que ela chegou atrasada.Afinal não estamos na areia húmida, nem os teus olhos se perdem na distância. Foi tudo um sonho. Um sonho lindo que acabou, como todos os sonhos. Afinal o outro era outro e assim vou voltar. Quero chegar a tempo de ver os seus beijos longos, o apertar frenético dos corpos, o desejo estampado nos seus olhos, a vontade de esquecer o passado que os traiu e que também traíram, as paixões de outrora, feitas em cinza. Sim, porque já fomos cinza.
Mas será mesmo que vou chegar a tempo?
O que os meus olhos viram foi ontem e ontem quer dizer há muito tempo. O que aconteceu naquela sala nunca mais volta a acontecer porque nunca aconteceu, ou foi de outra maneira. Vai sempre faltar qualquer coisa ou haver coisas a mais. E os olhares não vão ser iguais. Ele já não procura os dedos dela, à espera de uma resposta, de um sinal. O seu corpo vai ter um outro odor. Há novas feromonas no ar. E os beijos trocados vão ser também diferentes. As palavras. As palavras que não disseram vão ser ditas.
Não será melhor voltar-me para a onda que não vem?
Ah!, se ela pudesse estar agora comigo, à beira-mar, ouvindo o ruído das ondas! E se pudéssemos estar muito juntos, como um só, esperando pela onda que nunca virá!
Mas não. Hoje perco tudo o que ganhei ontem. Alguém anda a brincar comigo e a dar-me hoje com uma mão para roubar amanhã com a outra. Algo que tem muitas mãos e que nasceu de um acordo feito entre Deus e o Diabo. Algo que me dá a força de vencer e a fraqueza de perder. Algo que me encanta, me atrai, me faz feliz; que me desencanta, me foge, me entristece.
Já não vale a pena falar de ondas e isso. O que importa é dizer que estou aqui, na tua frente. A ler nos teus olhos doces o minuto que chega. A tentar adivinhar se entre o ontem e o hoje existe uma ponte ou a deitaram abaixo. A tentar acreditar que hoje ainda será melhor.
Gosto deste cheiro a maresia. Vá, meu amor. Chega-te mais para mim. Quero falar-te ao ouvido. Não te assustes que não sou a tua sombra. Sou mais. Talvez o destino que te espera.
Será verdade?

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