terça-feira, 8 de setembro de 2020

Não te vi!

 




Procurei-te na casa dos cânticos ale­gres e dos convertidos. Tinha uma secreta esperança de ver-te. De ouvir a tua voz. De saber se já estavas convertida àquela seita que prometia a abundância. Imaginava ser coisa difícil. Sim, por­que tu eras um "diabinho" que nasceu da morte de um anjo, segundo disse a tua mãe. Não sei se te converteste mas quiseste converter-me. 
A história é longa. O meu objetivo eras tu e fingi que estava convertido. Tudo para tentar descobrir se naquele dia tínhamos viajado para lá do nosso mundo ou se tudo não passara de uma alucinação. 
Enganei-te. Não conseguiste converter-me. Acredita que não estou a culpar-te. Apenas a tentar convencer-te que nem sempre consegues aquilo que desejas, conforme costumavas dizer. Desculpa se te magoei, mas estas palavras tinham que sair. A força do Leão veio ao de cima e tu, como mulher Caranguejo, nada podias fazer senão submeter-te aos desígnios do destino que Deus pode traçar. Até porque a influência da lua não era positiva, segundo uma vidente que consultei.
Enquanto as pessoas saíam do templo, ocorreu-me que estávamos em setembro. A magia de se­tembro que sempre me envolveu. Aconteceu o amor, a paixão e também o desencanto.
Recordei-me daquela tarde em que estivemos no templo a que dei o nome de "casa alegre". Cantando. Apertando as mãos. Sentindo a química da atração. Tro­cando olhares cúmplices. Construindo uma utopia com a cumplicidade daquele ambiente feito à nossa medida, mas só para o momento. Apertaste-me a mão com força, talvez para que ficasse sem a mínima dúvida. Então, eu respondi. O ar ficou impregnado de esperança. Até que parecia haver um cheiro a morangos silvestres, o que, para mim, era um bom augúrio. 
Foram três horas só nossas. Voámos no éter, para lá dos cânticos alegres e dos gritos grotescos dos pobres endemoniados. Não sei onde estivemos, mas estivemos e foi bom. Foi bom fundirmos os pensamentos e sonharmos. O futuro breve foi só de nós dois. Mas depois nunca mais aconteceu poesia!

As pessoas continuavam a sair. Talvez que estivesses escondida lá dentro. Não de mim. Das palavras que o poeta escreveu e que tanto te encantaram.
E se eu entrasse na casa dos cânticos alegres?
Satã? Que ideia!
Desta vez não cheguei a entrar porque ouvi a voz duma mulher. Não eras tu. Não era a tua voz doce que nunca mais ouvi. A voz de um "diabinho" que apetecia possuir!
A voz da consciência...? Também não era. Mas não me enganei. De facto, alguém fa­lava comigo. Uma mulher de cor. Substan­cialmente volumosa. Voz rouca. Gotas de suor no rosto. Alguém que me pedia ajuda. Queria ir para a Charneca do Lumiar e não sabia como. Expliquei-lhe o melhor que pude. Cortava à direita. Depois à es­querda. Seguia em frente...
Ficou a olhar para mim e sorri para ela, resignado.
Lá seguimos. Conversando sobre a casa dos cânticos alegres. Da sua fé e do meu ceticismo. Fomos andando até que a paragem do autocarro ficou visível. Magia ou não, senti­-me melhor do que nunca de regresso a ca­sa. Foi muito positivo ter ajudado aquela desconhecida. Eu tinha substituído o seu deus por uns minutos em que me tornei no amor universal tão falada na igreja dos cânticos alegres, dos convertidos e dos curiosos, onde me incluía.
Um pouco ao de le­ve, enxuguei uma lágrima de negra perdida na grande cidade. Foi um bom começo.
Não eras tu que falavas do amor universal?
Suponho que ficaste lá dentro, escondida, e adiámos o encontro. Mas o mais importante é que aconteceu poesia e desta vez não foi contigo...


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