domingo, 13 de setembro de 2020

No dia em que a Força dominar

 



A máquina mais perfeita será no futuro a identificação do homem cerebral com o homem-computador. Serão amanhã, ainda utopicamente falando, dois num só e é esse o motivo porque ainda não se descobriram. Na sua união reside a força, o controle absoluto do primeiro pelo segundo. Mas a sua influência é exercida por curtos momentos. E, nessa altura, o maravilhoso acontece. Apaga-se o homem cerebral e ficam em laboração outros órgãos dos sentidos, aos quais podemos chamar sexto, sétimo, por aí diante. A esse propósito, fala-se então de perceção extra-sensorial, telepatia, telecinesia. Tudo não é mais que a imposição infinitamente forte do outro homem que trabalha, com muita luz, na escuridão do homem cerebral, que vai captando dados vindos do exterior, desconhecidos pelo seu parceiro, compilando, "link-editando" e guardando nos arquivos escondidos os ficheiros resultantes. Quando é oportuno, transmite informações importantes. Mas ao confrontar-se com o inexplicável, o primeiro julga ter recebido dons sobrenaturais que, afinal, já possui desde o nascimento, talvez com a acumulação de memórias de vivências recuadas.
A máquina mais perfeita do mundo existiu sempre e todos os homens a possuem, mas poucos conseguem tirar partido dela. Porquê? A razão é muito simples. Não passam de "homens cerebrais" no limiar dos novos conhecimentos que tanto os assustaram e continuam a assustar, apesar dos avanços consideráveis. Ignoram, pura e simplesmente, as potencialidades que os podiam levar por outros mares nunca antes navegados.
O domínio de novos campos não está na tentativa de encontrar um equilíbrio entre os dois homens que coabitam, sem o mínimo conhecimento ou desconfiança, um território paralelo. Também não está na fusão pura que conduz sempre à anarquia, à doença mental e consequente destruição que vai servir de terreno para o ressurgimento de mais uma tentativa, noutro corpo físico e noutro espaço temporal.
Como encontrar a solução?
A pergunta que fiz é sinal que já ando à procura pelos caminhos da iniciação. Muito às cegas, mas procuro. Sou paciente. Um dia encontrarei a solução que me há de guiar para terras distantes que nunca sonhei alcançar.
Parece que a máquina trabalha com muitas extensões e torna-se difícil encontrar o ponto de convergência de todas essas extensões. É difícil encontrar o local onde agora estou instalado e onde vão desaguar todas as informações que logo são tratadas, manipuladas e postas em arquivo. A melhor forma de chegar a mim é saber quem sou e assumir de vez a verdade do suposto absurdo. Mas parece que os fios estão trocados. O homem cerebral apenas recebe algumas interferências do homem-computador. É tempo dele passar a ser o objeto cibernético e de se sentir feliz por tender para a identificação infinita com Deus. O passo final é ser Deus, bem dentro de Deus.
Mas será que Deus existe?
Como chegar a Ele sem ser pela fé?
Moisés falava com Deus, mas teria sido o homem ideal para falar com Ele?
Praticou sempre o bem?
Então... praticar o bem conduz a Deus? Então... praticar o mal, não tem depois uma mão Sua para lhe iluminar a mente que entrou nas trevas?
Deus é infinitamente Bom. Deus é Omnipotente. É Tudo e Nada.
homem cerebral ficou muito aquém das expectativas. É altura de ser substituído pelo seu irmão falso-gémeo que está oculto no espaço sem tempo. Há então que descobrir onde me escondo e trazer à luz o dia de trabalho a cem por cento em que cada segundo passa a valer o limiar de uma eternidade.
homem cerebral ainda está a escrever?, ou é o outro, ainda não assumido?
Sinto a proximidade da censura. Os limites. Não sei onde mora o botão de transferência de um homem para o outro dentro do mesmo corpo.
O meu desejo final era que se conhecessem e juntassem os poderes que acumulam. Uni-los, fundi-los num só. Mas nem no papel será possível concretizar o sonho, sobretudo quando este parece impossível.
Curto-circuito!
Amor impossível.
caçador esconde o isco e esconde-se, algures em campo neutro, na chamada terra de ninguém. Apesar de tudo, mantém-se alerta. Um dia, quem sabe...?
A utopia para o amanhã próximo virá trazer, por caminhos aleatórios, tal como foi concebida a vida, a perfeição, o positivismo, a bondade absoluta e o amor universal. A eternidade não será o fim. A eternidade será um outro caminho a ultrapassar, procurando sempre, depois de cada buraco negro, uma nova aurora. Mas, primeiro que tudo, tenho que descobrir de onde vêm algumas informações que os meus órgãos dos sentidos não receberam!

Não perdi a esperança. Voltarei um dia, se ainda cá estiver. Isto é: se Deus quiser... se é que existe ou se sabe que eu existo. Bem chamo por Ele. Bem tento falar com Ele, mas está sempre off. Pelo menos para mim...

Mocidade perdida

 

QUINTA-FEIRA, 10 DE JUNHO DE 2010

Ser e não poder ser


                  Do seu tempo de menino
                  recorda o jogo do pião
                  lançava-o para novo destino
                  ficando com a corda na mão.


                  E o berlinde que rolava
                  para outro berlinde alcançar
                  enquanto o menino olhava
                  sem a certeza de acertar...?


                  O berlinde que era o mundo
                  do menino que o lançara
                  rolando  mudou num segundo


                  o rumo que estava traçado
                  e que Deus lhe destinara
                  sem ter sido consultado!

sábado, 12 de setembro de 2020

A mulher que passou na rua

 



Ao passar naquele rua
cruzei contigo o olhar
despi-te... fiscaste nua
fiquei louco por te amar.

Foi nessa rua que um dia
te beijei com paixão
mas quando te perguntei
se me amavas já sabia
que dizias que não
fingindo que nada te dei.

Nada te dei  é verdade
nem nada te podia dar.

Foste a mulher que passou
e despi-te mal te vi.
Ninguém tanto te amou
como logo te esqueci.

Se voltares àquela rua
com esse olhar provocante
serás minha numa hora.
Vou despir-te e ficas nua
a paixão vem num instante
noutro instante vai-se embora.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Com tempo ou sem tempo



Se as palavras que disser
as livres e as proibidas
que o pensamento criou
e se as puder libertar...

Se for livre de as dizer
sem uma só omitir...

... Então o nosso amanhã
é o abismo que nos afasta
em que te vejo, utopia
correndo ao meu encontro
cabelos soltos ao vento
correndo correndo sempre
entre o verde das searas
e o vermelho das papoilas.

Então o nosso amanhã
eu crepúsculo e tu viçosa
é o abismo que nos une
cada um na sua margem
focando o mesmo horizonte
onde o futuro acontece
e estás à minha espera
não vou ao teu encontro
pois já não sei onde estás...

Se viesses ao meu encontro
com os relógios já parados
o teu tempo continuava
e o meu ficava para trás...

O homem e o poeta




Quem era o homem que um dia chamaste à ribalta dos teus sonhos?
Não te lembras...
E será que te lembras do poeta que te encantou? 
Esse sorriso quer dizer muito. Lamento. Foi um absurdo desviares o destino, fugires do homem e acolheres o poeta sedutor e intemporal que te fez sonhar. Sabes?,  ele só está de passagem e amanhã partirá para outros desígnios. É injusto, pois é. Não sabias? Ele é assim. Mas eu estou aqui. Acredita que o homem que ignoraste teria todo o tempo para ti. Vais esperar por ele? O outro homem não existe. É um poeta. 
Mas escuta. Quando acordares sem as palavras do poeta que te encantou, é também tarde para procurares o homem que, fatalmente, perdeste. 
O homem também está de passagem?
Talvez. Mas por outro motivo. Prepara-se para fugir da teia com que tentaste envolvê-lo. Era um golpe perfeita, Madalena. Apostaste e perdeste. 

Precisei de usar muitos subterfúgios para finalmente a Madalena não faltar ao compromisso ao qual vinha fugindo há uns tempos.
Desta vez foi ela quem escolheu o restaurante. Não ficava muito longe do nosso local de trabalho. Logo à entrada, havia uma passagem estreita e depois desciam-se umas escadas em caracol. Enquanto descia as ditas escadas, o meu pensamento centrava-se numa decisão em que, mal fosse tomada, não podia voltar atrás, embora soubesse que ia deitar tudo a perder. Eu era assim. Ou tudo ou nada.
Escolhi uma mesa recatada no fundo da sala. Deixei que se sentasse, olhei em volta e só depois me sentei.
«Você tem todo o ar de Escorpião, Mário. Quis ter a certeza que estava em segurança.»
«Lamento desiludi-la. Sou Leão.»
«Bem sei.»
«Leão-Dragão...»
«Oh!»
«Não se assuste. Sou protetor.» 
«Ah!, fico mais descansada.»
Depois de uma conversa superficial de signos, motivada pelo diálogo que então tínhamos trocado, não perdi a oportunidade para apalpar o terreno movediço subjacente e tentar saber se de facto sentia que a lua a condicionava, como a vidente afirmou. Para grande surpresa minha confirmou que a lua lhe bloqueava, e muito, os impulsos. Impulsos. Que impulsos? Fiquei a sonhar.
«Mas considero-me uma mulher livre.»
Nesse momento lembrei-me dum comentário jocoso da boazona da Marta. Com essa mulher teria ido para a cama se ela não tivesses apresentado a amiga.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
Este comentário vinha reforçar uma ideia que começava a configurar-se no meu horizonte das suposições. Essa mulher era mais livre do que eu supunha. Mas valia ainda a última tentativa para encontrar uma solução para o nosso caso.
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos literários tinham entrado num beco sem saída e que os outros, os ditos profissionais, parecia que voltavam à primeira forma. Ia regressar à base. Deixava, de todo em todo de dar a colaboração ao Projeto. Mas naquele dia estava ali para a ouvir. Pela primeira vez queria ouvi-la. 
Ena verdade ouvi-a. Pouco ou nada disse, mas o suficiente para ficar alerta. Coisa simples. Tencionava montar um negócio.
«Um negócio?» perguntei-lhe, ao mesmo tempo que escudava-me em terrenos seguros.
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Ao mesmo tempo que lhe fazia ver que era a pior opção que podia tomar, falei-lhe numa que tinha tomado e que nunca apresentou resultados positivos.
«Já não acredito nos sonhos do dinheiro fácil. Tenho várias sociedades de totoloto de que faço a gestão e estou a apostar forte porque tudo somado é o que sabemos. Sabe, temos muitos prémios, mas só um grande compensa o investimento.»
Espantou-me ouvir o seu comentário:
«E é a trabalhar que vai conseguir, Mário?»
«Sei muito bem» olhei com atenção para o seu rosto. «Deve ter cuidado com os gatos. Esse arranhão quase que lhe atingiu a vista! Foi um gato, não foi?»
Confessou que gostava muito do gato, mas era um bichano estranho.
«Mas não me disse que agora só tem um cão?» 
Apanhada em falso?
«É do meu sobrinho.»
Sorriu. Não se deixava apanhar em falso com duas cantigas.
«Está certo. E que mais? A Madalena não tem outros projetos?»
«Outros?»
«Sonhos...»
«Ah sim.»
Foi a minha vez de sorrir. Fiquei na expectativa.
«Já escolheram?»
Era o empregado.
«Madalena?»
«O cabrito assado daqui é muito bom.»
«Então o mesmo para mim.»
«E para beber?» perguntou o empregado.
«Reguengos tinto.»
«Reserva?»
«Sim.»
O empregado afastou-se.
«Os sonhos... Madalena.»
«O vinho não é caro?»
«Hoje não dividimos ao meio. Fui eu quem fez o convite.»
«E eu escolhi o restaurante.»
«Importa-se...?»
«Obrigada.»
Encolheu os ombros. Só sonhava quando dormia. Nada mais tinha para contar. A sua vida era simples. Gostava mais de ouvir.
Sabia que era um sinal de defesa.
«Então vou continuar a falar.»
«Por que motivo vai desistir do Projeto?»
«Para mim está morto. Prefiro continuar a dar aulas, Madalena.»
«Vão sentir a sua falta.»
«Ninguém é insubstituível. Já têm contabilistas, os malabaristas das contas. Bem vão precisar de milagres.»
«Acha?»
«E se falássemos de outra coisa. Por exemplo, do negócio que tem em mente.»
«Trapos. Preciso dum sócio que me financie.»
Era do que estava à espera.
Já comíamos o cabrito, uma vez que era prato do dia. Enchi-lhe o copo.
«É um delicioso néctar, mas cuidado que tem grau.»
«Obrigada por avisar-me. Não passarei de um copo.»
Então ela precisava de um sócio...
Indiretamente estava a fazer-me um convite, já que não tinha coragem para o fazer com frontalidade. Medi os prós e os contras e decidi logo que não iria por ali. Financiando o negócio, mais tarde ou mais cedo tinha-a nos meus braços. Por outro lado, alimentar um saco sem fundo ia sair-me muito caro. Assim, fingi ignorar o convite disfarçado e preparei o assalto final. Ou tudo ou nada.
Não me contive e disse o que sentia por ela, o que desejava para nós e o que faria e não faria, caso aceitasse a minha proposta.
No fundo, bem no fundo, o que queria?
Uma vida a dois.
Abriu muito os olhos, aparentemente surpreendida. E eu continuei falando. Falando para lá dos limites razoáveis. Sempre fui assim. Nunca gostei do meio termo. No meio termo residia a dúvida.
Praticamente não reagiu. Tinha sido apanhada desprevenida. E eu continuei falando, mais agressivo e zangado do que nunca, à medida que dava conta que ela acenava negativamente com a cabeça. A surpresa foi talvez uma tática dela. Nunca dera conta. Jurava.
«E os poemas... ?»
«Você é um poeta, Mário! Achei graça. Até gosto muito dos seus poemas.»
«Só?»
«Sim» fixou o olhar em mim. «Nunca o vi como um homem na minha vida. Até porque estou noutra.»
«Está? Não parece...»
«Olhe, Mário, já vivi uma vez com um homem e acredite que sofri muito. Agora sou uma pessoa livre e quero continuar assim.»
«Mas não disse que está noutra?»
«E não desminto. É uma relação temporária. Sem importância. Não, não quero voltar a envolver-me.»
Provavelmente um sócio. Um amante-sócio.
«O raio que a parta!» pensei.
«A Madalena é que conhece os caminhos por onde anda...»
Comemos a sobremesa em silêncio. Ela, um gelado e eu uma mousse de chocolate.
«Bebe café?» perguntei.
O seu sorriso envolvente! Se ele falasse verdade...
«Sim, por favor.»
Logo a seguir pedi a conta. Tinha pressa de sair. Que pena o seu olhar terno saber-me a falsidade!
Perdi-a. Tive a certeza.
E voltei a perdê-la quando ela, à saída do restaurante, me deu uma oportunidade que não quis aproveitar. Estava ferido no meu orgulho. Ou tudo ou nada.
Pôs uma mão sobre o meu ombro e disse:
«Temos que nos amparar um ao outro.»
Não respondi.
Foi a única vez que não fugiu. Neste dia. Logo neste dia. Olhei-a. Parecia triste.
A mão desceu ao longo do meu braço esquerdo. Por momentos, revi as sensações que tivera na igreja e tive quase a certeza que tudo foi real nesse dia.
Dei-lhe um beijo no rosto. Depois, afastei-me. Afastei-me, sem olhar uma única vez para trás. Talvez a culpa não fosse minha, mas do poeta que tanto invejava. Só ele podia acariciá-la com palavras, encher de beijos aqueles olhos doces que nunca fugiam. Só o poeta tinha conseguido alcançar o inatingível. Possuir o corpo, sem defesas, que ela negara ao homem. Sim. Era toda uma obra do poeta e não do homem que sofria porque o outro entrou, sorrateiro, pela porta proibida e ouviu-a dizer que nunca tinha imaginado que os sentimentos do homem eram aqueles. Entrou com a magia do sonho, mas não abriu o caminho ao homem.
Só num ponto, homem e poeta foram um só ao consentirem que ela falasse um pouco do seu passado. O céu da esperança abriu-se, por momentos, quando a mulher vivida resvalou, deixando vir à superfície recalcamentos antigos por ter sido usada por um homem que a deitou fora quando se cansou. Não queria repetir o erro.
«E com o poeta?»

Madalena

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Desencontro




Extraído de:

O tempo esgotou-se. Estou farto de esperar. A Esfinge vai esconder-se na sua concha e faltar ao encontro. Que interessa esperar? Tem sido sempre assim.
São quase oito horas da noite. Os alunos do curso noturno estão a fazer ponto. E a Esfinge? Claro que faltou ao encontro. Tinha prometido e faltou.
Devo cair em mim. Não posso exigir que cumpra promessas. A Esfinge terá as suas razões. Só ela sabe. Se é cínica, ou não. Se tem medo de fazer dianética comigo.
A propósito, disse que era perigoso. Eu encolhi os ombros...

«Aviso-o desde já que isto é um desencontro no presente...»
«Dianética?, afinal quem vai fazer dianética comigo?»
«Você parou. Fiquemos assim. É perigoso.»
«Ia caindo do banco!»
«Não viu que lhe trocaram o banco por outro mais baixo?»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Não foi ele. Desligaram-me a mente analítica e disseram para descer como de costume...» 
Então mudou o rumo do diálogo.
«Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens. Chegou o fim do tempo.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«O mesmo se passa comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo.»
«Quem tirou o banco? Dei uma queda aparatosa quando quis descer do banco, para trás, sem ver onde metia os pés. Foste tu?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Pronto. Não se aleijou, pois não?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu sou a Branca de Neve...»
«Acredita. Foi mesmo milagre. Tenho de substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade. Até pode ser destino.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a boca enorme de predador. Sim, fatalidade. Fatalidade é destino, é sorte. Boa ou má sorte.»
«Agora já entendi. Posso tratar-te por tu? Olha lá...»
«Sim.»
«Desculpa não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura...»
«Se não apareceste... Ou melhor, se chegaste tarde, então nunca mais chegaste...»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando trocaram o banco ou o chão fugiu para baixo. Ela regista tudo. É pena que seja tão desorganizada.»
«Bem, vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio. Tu é que disseste que querias ser iniciado.»
«O Artista é que disse que valia a pena. A propósito, ele entrou no teu laboratório secreto. Diz-me que entrou, que manipula o poder dos tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o cadinho da paixão. Diz-me que não estou enganado, que os ácidos reagiram, docemente, com as bases e resultou um pó branco que não devo tomar.»
«Quequeres que diga?» 
«O pó. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Nunca estivemos. Estou em ondas curtas. E tu?»
«No passado.»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi no passado!» 
«Não eras tu...» 
«Que pena!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas do comboio do futuro, como podes ter existido?»
«Não te entendo. O comboio do futuro já está em cinzas? Então não tenho futuro. Chamas por mim e depois dizes que não me queres. Dizes que também não tive passado. Esqueces o que fomos e concluis que não pode haver futuro! Mas eu digo que sim. Eu sou tudo. O passado, o presente e o futuro.»
«Desengana-te. És a Esfinge.»
«Pergunta-lhe.»
«A quem?»
«A ela. Quando está assustada, o que faz?»
«Foge...»
«Inevitavelmente. Mas porquê?»
«Deixa isso. Não sabes saltar?»
«...?»
«Eu dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa e não lhe perdi o jeito. É como andar de bicicleta. A propósito, já ouviste falar na Borsic
«Nesse tempo eu era a gaivota...» 
«Puro engano. E no copo que rodopiava no snack
«Com a Patrícia em frente ao Mário.»
«Vejo que te lembras. Decoraste a lição. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis
«Hoje ainda são longos?»
«Só a eternidade é mais longa!»
«Gostava de voltar um dia ao snack. O Mário ainda lá está a ver as gaivotas a planaram no céu. À espera de Patrícia. Um dia, a cadeira em frente ficou vazia e a Patrícia nunca mais apareceu.» 
«Ela...» 
«Foi o símbolo do teu desencantamento.»
«Sim. Nesse tempo. Mas a Manuela existiu (1)
«Estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo contigo, menos te conheço. Não sei se és o Mário dos negócios fracassados, ou o outro que se esconde atrás de si. Feitas as contas, vocês são três.» 
«Três?» 
«Contando com o autor.»
«Ah sim.»
«Eu também não sei. Mas afinal quem és tu?»
«Chamo-me Esfinge (2)
«Esfinge?»
«Sim. Já fui do azul. Lembras-te?»
«Já foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul. E essa mulher já não sonha. Nem sequer atravessa desertos vermelhos. Vive na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar.»
«Essa mulher...?» 
«Essa, sim, foi do azul. Ficou no passado remoto. Para sempre. Ninguém mais poderá ser do azul, entendes?»
«Se é assim, nem sequer existo ou também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Poder corrigir muita coisa que resultou mal. Evitar as guerras que ceifaram muitas vidas. Os terramotos.» 
«Impossível. Não podes modificar o passado.» 
«E o destino? Olha, não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa do pó branco
«Vou contrariar a regra. Talvez possa atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o maldito Artista que te levou nas viagens.» 
«Fazes isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só há uma coisa...»
«Que coisa?»
«Estamos em passados distintos. Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«Talvez seja melhor voarmos. Não estamos a sonhar? Abre os braços. Isso. Não tenhas medo. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. O sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras, nem fantasmas brancos que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho.» 
«Deixa-te de tretas e obedece. 
«Pronto. Já abri os braços. Se calhar, queres agarrar-me. Conheço o truque. Os homens são todos iguais. Maliciosos. Envolventes. Fatalmente envolventes.»
«Tu é que és envolvente. O  que me deste um vez não era a minha heroína. Essa, voou contigo sem norte...» 
«Pois foi.» 
«Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser outra viagem
«Eu não faço viagens. Bem sabes que somos diferentes. Aqui não há lugar para as alucinações.» 
«Desculpa.» 
«Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
«Faz de conta que vês. No azul...»
«Ah!, no azul... Agora me recordo. As gaivotas só voavam no azul. Pronto. Já agarrei a gaivota. Estou a voar muito alto. É maravilhoso voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Já estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele. É suave. Ainda não tinha dado conta. Os teus olhos?, deixa que os recorde. Foi há tanto tempo que os vi!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar (3)
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Chamo-me Esfinge...»
«... e tentaste profanar o meu laboratório secreto com a força misteriosa do pó branco
«Tenho medo! O passado vai tragar-nos. Está tudo escuro! Não me largues a mão!»
«É tarde. É muito tarde.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio!»
«Frio, não direi. Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conheci, mas também há miragens perigosas nestas ruas que não existem. O futuro levou-as. E agora onde vou procurar-te? Só queria ver-te durante um segundo...»
«Deliras. Vais fazer-me mal?»
«Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu ando por aí. Algures. Se me encontrar, posso alterar o meu destino. E também o teu, se quiseres.»
«Algures é finalidade?»
«Boa pergunta. Mas agora chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo. Estou ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Já não sou a Esfinge. Perdi a identidade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo muito longo...»
«Entrámos no boqueirão. É o efeito da queda. A queda é longa. Eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte é eterna, diz antes assim...»
«Está escuro. É assim que se morre?
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro. Tu é que já morreste uma vez.» 
«Enganas-te, sou a Esfinge. Não te lembras?
«Era só para confirmar. Sabes uma coisa?»
«Sim?»
«Chegámos.»
«E então?»
«Não consegui encontrar-te.»
«E a ti, encontraste-te?»
«Ainda não. Mas vai acontecer!»
«Já não sei quem sou!»
«Lembras-te do pó branco
«Que pó? Não sei de que estás a falar. Dói-me tudo. O corpo. A alma. Está muito escuro aqui. É assim...»
«...que se morre?»
«Não te vejo. Onde estás?»
«Aqui. Mas já não vale a pena.»
«Porquê, Mário?»
«Porque agora sei que não és a tal.»
«Ajuda-me!»

Na órbita do acontecer havia ténues vestígios de esperança. Ao longe. Onde voavam livres as gaivotas que já não picavam para a rebentação. Puro engano. Lamento. Não a ajudei e ela foi levada para sempre na viagem trágica do pó branco.
Se tenho remorsos?
Não sou Deus...





(1) Manuela

Morto-vivo

 


Queres morrer?

Então morre. Mas depressa. Tens pouco tempo!

Cansa-te a vida?
Então vive, mas devagar
porque tens muito tempo!

Que chatice!
Acordas todas as manhãs.
Olha,finge que morreste. É a solução.
Só assim vais recordar que morreste muitas vezes!

O número




É cruel bloquear o sofrimento. Tão cruel como pisares a rosa vermelha que te ofereceram. O sofrimento e o amor são livres e têm a extensão da verdade. Sem algemas, podem escolher o seu destino. Juntos. Fatalmente juntos porque não podem passar um sem o outro. Podem também descobrir os desencontrados e inocular o vírus que os vai unir, ou co­locar, lado a lado, o tempo de uma vida.
Na caminhada rumo ao futuro, a vida continua a fluir, mesmo depois dos corpos serem devorados pelos vermes e as memórias serem totalmente apagadas. Como se em cada vida houvesse um novo nome de Deus que corresponde a um quantitativo de amor e de so­frimento que não têm dono mas são de todos. Ligam ou destroem. E essa fatalidade é um número que sai numa roleta que ninguém pode viciar. Acontece amor verdadeiro quando o mesmo número se repete no Homem e na Mulher. Mesmo número. Mesmo Deus. Difícil de acontecer. Probabilidade a tender para zero.
Acaso já tivemos o mesmo número?
Quando os nossos olhares se cruzaram e ouvi a tua voz, senti de imediato o desejo de perguntar se alguma vez Deus escolheu o mesmo número para nós. Quase acredito que sim. Sem te conhecer, parece que sei tudo de ti. Da tua vontade agrilhoada por força das circunstâncias que só nós conhecemos. Das fugas curtas em que és verdadeira. Dos teus olhos que escondem o número que, um dia, pode ser também o meu. Porque sei tudo de ti e nada sei, o sofrimento existe e vai crescendo à medida que acenas esperanças e logo desapareces no negrume da tua prisão.
Compreende. O sofrimento e o amor existem lado a lado e de­voram-se mutuamente. É fatal acontecer a coexistência incontro­lada do espinho e da rosa.
Estou livre sem o ser, porque ainda não te tenho toda minha. E a ti?, quem te prende? Foge do medo e deixa fluir o amor. Sem barreiras.
Sabes? Estou rico. Nada tenho para te dar. Apenas sonho que trago o mesmo número que tu...

Concepção de ti



Esses cabelos castanhos são partículas de felicidade, razão milenária perdida no mundo negro dos teus sonhos. Da tua boca oiço a voz que não diz poesia, mas sabe prender com palavras doces. E doce é o sabor de provar o fruto agreste que vou colher verde no meu pomar de desencantos. Amargo é o sabor de provar o fruto perdido que vou colher doce no meu pomar de saudades.
Sangrará o coração se te esfumares e a verdade de amanhã há de falar na lenda da tua perfeição.
És a alucinação da oferta ao utopista que sonha impossíveis.
És o símbolo sem matéria que o utopista concebe e não tem...

E nunca terá... 

Certeza




Vieste tarde... ou nunca mais chegaste?
Mas porque vens tão tarde?, ou por que nunca vieste?
Tenho os minutos contados desde que prometeste vir. Os minutos vertem para horas e estas para dias. Dias infinitos que passei à tua espera. E tu nunca vieste. Dias inúteis. Sim. Inúteis. Afinal vieste tarde mas não te conheci. Eras outra alguém como tu... mas não eras tu.
Sabes?, tu nunca terias vindo tarde! 
Assim, se vieste tarde, nunca mais chegaste...

Promessas esquecidas


Onde estão as juras de amor eterno que ontem trocámos, os sonhos que nunca vivemos e os teus olhos tristes, porque Ele os levou?
Tudo o passado enterrou. Só questiono a tua partida repentina. Questiono por questionar porque o inevitável já sabemos o que é.
E se um dia os teus olhos tristes voltarem da longa viagem que os levou,
nesse dia (quantos são hoje?) que foi ontem já não te revejo nem talvez te amo como a forma daquele grande amor que nos tomou.
Hoje estou livre. O meu rio que não quer chegar à foz diz-me que não há fantasmas do passado, nem saudade. Não sei. Revolvo o baú das nossas recordações e só encontro poeira de ilusões. Tudo ruiu. Não há remédio. Podes continuar na tua viagem através desse céu constelado de estrelas perdidas, que eu ainda vou ficando por aqui.
Ah!, mesmo sem ti, que bom é estar por cá no dia de hoje!
Separaram-se as águas e parece que finalmente vou outra vez ser feliz. Feliz. Uma força de expressão. A felicidade não é senão um estado de alma que nem sequer é permanente, que acontece quando menos se espera, que se volatiliza sem avisar. Ser feliz é continuar por cá.
Agora, a propósito ou não a propósito, ainda hoje me lembro das juras de amor eterno que então fizemos, dos castelos no ar que construímos e se fizeram em espuma. Paradoxalmente, uma espuma que o tempo nunca apagou.
Hoje é o dia de hoje e vou ficando por aqui. Mas gostava de saber onde estão as promessas que fizemos e que esquecemos. Como foi que esqueci. E também porque te esqueceste de lutar contra aquela mulher que me afastou de ti num devaneio que durou pouco mais de um mês.
Foi magia ruim que nos fizeram?
Coisas entre Deus e o diabo não me meto nelas. O melhor é fazer de conta que te esqueci e continuar a navegar no meu rio que teima em fazer meandros e mais meandros para atrasar o tempo de chegar à foz.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Quero pensar só em ti

 



“Por muito que tenha tentado reconstituir o passado remoto, tal como o vivi ou julgo que vivi, nunca deixei de recriar as mesmas imagens.
Não renego esse passado mesmo que tenha ocultado um Mário, outro eu que não eu mas eu, feliz ou infeliz, que nunca conheci.
Se estamos sempre em mudança, como poderei hoje reviver a vida que ontem foi simulada?”

“Queria ser um simples botão da tua blusa para sentir na ausência o contacto suave dos teus dedos e inalar o perfume desse corpo que sempre endeusei, embora muitas vezes o tenha ignorado.
Ao mesmo tempo, também não queria ser o simples botão da tua blusa porque nunca existiu um fio real para me ligar a ti.”

“Por mais que procure por todos os sítios em que te vi, tu e tu, e onde partilhámos, quiçá, o mesmo sonho, nunca te encontro, porque, ao ver-te, pareces ser outra, embora sejas igual à que pareceste ser.”

“Vivi a vida que pude viver. Por vezes, vivi a vida que quis viver. É destes últimos momentos que guardo uma infinita saudade, lamentando não ter conseguido passá-los para o real. O lápis deu-lhes a forma que julguei certa e o teclado comunicou ao computador a verdade deformada.”

“Quero pensar só em ti para te ter para sempre comigo. Mas quem és tu? Os olhos perdem-se na distância e já não te vejo. Abro-os e dou sempre comigo a sonhar com um olhar doce e triste que talvez nunca tenha existido.
Novo pensamento e tenho comigo agora um sorriso gaiato, atrevido. Que bom! Vou fixar o momento para te ter de novo comigo e assim poder continuar a pensar só em ti. Então, fecho os olhos e tento conservar esse momento curto que me tornou feliz.
Sabes?, tenho medo de te perder, sorriso gaiato! Mais tarde ou mais cedo terei que abrir os olhos e vou ver-te com outro olhar, embora continue a pensar em ti para te ter sempre comigo.”

“Foi inevitável acontecer. Não quero discutir como aconteceu. Encantamento, sedução, magia. Hoje és minha e eu sou teu. Continuas a exibir o teu sorriso gaiato que me torna feliz e me faz acreditar que nos conhecemos há muito tempo. Os olhares que trocamos parecem prometer um amor eterno e são as doces palavras que nunca poderemos dizer um ao outro, por razões óbvias. As outras palavras reforçam a promessa, dia a dia, enquanto eu pensar em ti para te ter sempre comigo e tu pensares em mim para me teres sempre contigo.
Mas amanhã como será?
Só posso ter uma certeza: o teu sorriso gaiato continuará a preencher no meu coração todo o espaço que preenche hoje. E mesmo que não queira pensar em ti, se o elo que nos une se tornar mais fraco, ficarás sempre no meu coração!”

“Há uma dúvida que me atormenta e que também te deve atormentar. 
Que nos espera e quem nos espera quando a Mão de Deus nos levar para lá, o outro lado da porta, onde mora a eternidade? 
Se não formos juntos, o que é mais certo acontecer, quem estará à minha espera depois de atravessar os tão falados túneis até chegar aos jardins do Senhor?”

Sim?

 




Foi há muito tempo, ou foi ontem?, quando a paixão vestiu o manto vermelho que te ofereci com um sorriso tímido que escondia as palavras que não te disse mas logo te seduziram.
Olhaste admirada sem saber se aceitavas um sorriso diferente de outros que te levaram.
Mas quem era o dono do sorriso?
O manto vermelho guardou o sorriso e veio um novo acontecer.
Talvez fosse o setembro dos sonhos falhados.
Vestias então o manto do tempo das paixões e “revisitei-te” logo. Como estavas bonita nas noites quentes de setembro! Os teus lábios rubros sabiam a morangos silvestres e eram cúmplices das noites quentes.
Mas as paixões não são como as andorinhas que voltam sempre ao mesmo beiral. Abafadas pelo vento suão vestem mantos ardentes que, afinal, são cinza fria amanhã.
Fui arquitecto de paixões, aprendiz sempre a viver amores e desamores mal vividos, desencantos, desencontros coveiro de esperanças perdidas, poeta que nunca rimou, beiral de ninhos desfeitos.
Mas num dia cinzento ou azul (porque há sempre um dia indeterminado) vi-te esvoaçar, graciosa, em volta do mesmo beiral que o tempo já destruíra. Mas ficou a recordação.
Os teus olhos que me encantaram olharam os meus com calor e fiquei logo a sonhar, embora soubesse que os sonhos mal sonhados pagam-se caro.
Vestias o manto da esperança, tão igual ao que foi primeiro que previ logo a chegada do tempo em que já não era ela.
E os olhos tristes que ontem vi, onde estão agora?
Vem de novo esvoaçar no novo beiral onde te espero. Quero sentir o calor do abraço...
Infelizmente, há sempre um amanhã escrito nas estrelas frias a revolver os destinos perdidos que ontem pareciam o que eram e que hoje já não são o que parecem.
O poeta dos sonhos ardentes abriu o manto rubro da paixão, fechou a porta mais uma vez e deixou lá fora o amor.
Hoje há novos avisos no ar. Paixão ou amor, não sei bem. Talvez amizade ou talvez não. Sinais que parecem trazer a boa nova de um novo despertar.
Abro a porta para o amor entrar. Sorris para mim. És graciosa. Mas no sorriso em que me envolves e nas palavras firmes que teces, nasce a dúvida e tarda a certeza.
“Só te dou a minha amizade porque o amor está escondido no meu coração que demora para um novo despertar; não digo nunca, mas não te amo. Hoje é assim e amanhã o que será será...”
Fico na dúvida. Impaciente. Esse sorriso terno que me mostras contrasta com as palavras que oiço. Quero acreditar mas és firme. Nada te faz demover. A amizade é real só real! Que eu não faça confusão.
Mas como o nunca não foi nunca, todos os dias acordava e abria a porta para o amor entrar. E logo a voltava a fechar.
A magia da incerteza é mesmo assim; num dia não, noutro dia sim...
O teu sorriso já é outro e não podes mais disfarçar. Estás feliz, esperas por mim. Estou feliz abro-te os braços. Bendito seja o mês de novembro que o setembro está morto. Não aconteceu em setembro desta vez. Olho em volta para ter a certeza que estamos sós. Mas coisa estranha!, virados para o crepúsculo de amanhã. Não interessa. Estou vivo. Há todo o tempo do mundo à nossa espera. Um mês, um dia, um segundo. Uma nova vida a correr para um novo amanhecer, quiçá curto.
Se foi mau viver na utopia dos loucos tempos da paixão e ter que perguntar aos ventos quando era o tempo de voar, sem fim, para lá do fim. E estar sempre sem chegar...
Ah... como é bom poder renascer das cinzas já frias. Amar madrugada adentro, sonhar que entraste e sorriste. Que eu digo sim e logo dizes sim. Que te abraço e te entregas.
Um mês, um dia, um segundo. Uma porta mais uma vez fechada, mas onde estamos eu e tu, não há fantasmas cá dentro, só falta ouvir o teu sim!

Saudades de ontem

 



Quem me dera ser criança
voltar aos tempos de outrora
mas o tempo nunca se cansa
mal chega vai-se embora.


Foi ontem e já não é hoje
o tempo nunca descansa
corre corre foge foge
e o ontem já não se alcança.


Se eu fosse senhor da vida
fazia-a correr  devagar
pela planície da esperança...


E já de esperança perdida
sonhava que ao acordar
era mais uma vez criança.

Quadras do vento que sou





O vento que sopra forte
não tem sempre rumo igual
quando sopra do norte
passa e não deixa sinal.

Ondas do mar alterosas
erguidas pelo vento sul
deixam marcas dolorosas
no céu que ontem era azul.

Trazidas pelo vento oeste
sopram brisas pela tardinha
são saudades que trouxeste
do tempo em que eras minha.

O vento leste que acalma
revoltas de sonhos perdidos
espelha no fundo da alma
saudades de amores já vividos.

Vento leste doce ardor
vento suão bafo quente
só não entram com amor
na alma de quem não sente.

Quatro rumos principais
quatro estradas por seguir
já não vêm dias iguais
no futuro que há de vir.

Quando o vento sopra forte
faz vergar o canavial
poder maior tem a morte
que rouba a vida do mortal.

Ainda mais forte que o vento
que sopra e abre o caminho
é o poder do pensamento
voando mais alto  sozinho.

O pensamento e o vento
são dois irmãos do deserto
na solidão que eu invento
vejo-te longe e estás perto.

Quadras o pensamento criou
no caminho que o vento quis
se o pensamento as riscou
o vento não sabe que as fiz.

O amor que ontem me deste
não passou duma ilusão
e a esperança que trouxeste
foi um vendaval de paixão.

No poema da partida
também tu rimaste amor
sem ti já não vale a vida
só ficou o vento e a dor.

O poder do pensamento
só é meu de mais ninguém
cria os poemas cá dentro
no vento que o homem tem.

Obsessivamente até ao fim?



Amo-te em cada momento que te possuo na cama, ou nos olhamos, olhos nos olhos. Amo-te quando me estendes a mão e a seguro e acaricio entre as minhas. Amo-te quando caminhamos ao encontro um do outro, naquela rua estreita de todos os dias, que nos une e ao fim do dia nos separa. Amo-te quando estás longe ou quando estás perto. Amo-te quando te zangas comigo. Amo-te em cada segundo que passa.
Vivo o amor ao compasso do tempo que se vai escoando pelo boqueirão a que ninguém pode fugir. Amo-te intensamente quando nos abraçamos, nos beijamos e quando os olhos trocam palavras em silêncio, palavras que só nós podemos ouvir. Eu sou assim e assim serei, enquanto for eu. Nunca me canso de dizer que te amo quando estamos juntos, nem quando te refugias nos espaços onde não te posso ter e mesmo aí, distante de mim, sentes que te amo muito e desejo.
Aceita-me como sou porque não posso ser doutra maneira. Um homem vulgar que o destino escolheu para, obsessivamente, te amar até ao fim do fim e mesmo para lá do fim, se é verdade que as almas se voltam a encontrar depois de se desprenderem dos corpos, que não passam de invólucros grosseiros temporários. 
Se for verdade o que oiço dizer e sinto, amar-te-ei na longa viagem rumo aos jardins do Senhor. Se for verdade, então serás minha para sempre. Se for verdade, amanhã e amanhã estarei contigo para nos amarmos. E quando voltar do outro lado da porta, porque também dizem que pode ser possível, então amar-te-ei de novo, embora não me lembre da última vivência que tivemos juntos.
Perdoa-me, meu amor, por amar-te não só quando te desejo e a cama se enche de amor, quando te aconchegas a mim e sinto que somos um só, quando brincamos um com o outro, quando te exaltas comigo, quando desespero por não acreditares nas palavras que te digo e não poderes ler o que me vai na alma. Perdoa-me, meu amor, por não conseguir amar-te calado, por te escrever estas palavras tolas, próprias de quem ama obsessivamente.
Beijo os teus lábios doces e macios e continuarei a beijá-los até que a cama se torne um deserto sem retorno. Então, obsessivamente continuarei a procurar o meu ideal que julgava seres tu.
Desculpa-me se te menti quando imaginei que o nosso amor não tinha fim... 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Utopia (7)

 

SEXTA-FEIRA, 17 DE OUTUBRO DE 2008



Hoje à noite, logo a seguir ao jantar, saí de casa com um objetivo primário, aquele que arrasta multidões para os estádios, televisões e rádios, e fazem soltar as emoções mais primitivas e as apreciações cegas, ao gosto clubista. Também não me posso demarcar dessas mesmas emoções, uma vez que tenho os meus gostos clubistas. Quanto às raízes, já não existem. Nos anos oitenta deixei de ser fã quase incondicional do Belenenses e, aos poucos, sem dar por isso, tornei-me irracionalmente adepto de outro clube. Virei a casaca. Única ligação lógica: o azul...
Escolhi um café de ambiente pouco ortodoxo, a começar na assistência, a passar pelo dono que desligou a máquina registadora pouco depois das nove, continuando a servir aos clientes, adeptos incondicionais e inflamados do Benfica, principalmente cerveja, sandes e café, e a terminar em dois agentes da polícia, obviamente fardados, que entraram, sentaram-se e comeram um petisco que não consegui identificar porque ficaram na mesa atrás de mim. Centrei a atenção na segunda parte do jogo e vi o Benfica crescer e chegar ao empate, para gáudio dos fervorosos adeptos. 
Tive que seguir o desenrolar do jogo com a chamada “bola muito baixa”, não fosse entretanto arranjar algum berbicacho. Os ânimos começaram a exaltar-se porque o árbitro estava a favorecer o Porto e os seus jogadores eram umas bestas, etc e tal. O pior veio no fim do jogo, quando o Porto desempatou. Levantei-me de imediato e ala que se faz tarde. O resto do pessoal ficou ainda a afogar as mágoas na cerveja,  porque o vinho tinto deixou de desempenhar o papel principal e a discutir a discutível injustiça do resultado.
Quando passava em frente à igreja daquele sonho em que vi a Maria, envelhecida e às portas da morte, lembrei-me dela e do destino que não tivemos.

Talvez nunca venhas a ler estas palavras. Ficarão guardadas numa garrafa virtual que vai atravessar o oceano imenso onde guardo todos os meus segredos de sonhos fracassados. Um dia, alguém vai encontrá-la, lê-la, talvez rasgá-la. É o fim natural da existência de uma vulgar mensagem com “palavras que nunca te direi”.
Fui um porto de abrigo para ti, podes crer. Se não me tivesses repelido naquela tarde em que fui procurar-te ao emprego, e tive quase a certeza que a tua vida era só quase solidão, talvez que uníssemos as nossas desgraçadas solidões!
Antes assim...
Maria... Ainda lês as utopias que escrevi só para ti?
Este, póstumo, aposto que nunca o leste!

Quando a utopia se esvair em lágrimas de sangue fatal e levar para longe os sonhos perdidos, já não tenho motivos para te recordar. Isto se conseguir.
As utopias que escrevi e ficaram esquecidas no baú que guardou as saudades do amor azul jamais virão à luz.
E se acaso te lembras de mim, do que fui para ti e que usaste, desengana-te que não volta a acontecer.
lEstou longe do teu mundo e vou gritar para quem me ouvir que a utopia já morreu porque nunca chegarei ao tempo em que as utopias se realizam. Sou mortal.
Trata de ser feliz.