
Extraído de:
O tempo esgotou-se. Estou farto de esperar. A Esfinge vai esconder-se na sua concha e faltar ao encontro. Que interessa esperar? Tem sido sempre assim.
São quase oito horas da noite. Os alunos do curso noturno estão a fazer ponto. E a Esfinge? Claro que faltou ao encontro. Tinha prometido e faltou.
Devo cair em mim. Não posso exigir que cumpra promessas. A Esfinge terá as suas razões. Só ela sabe. Se é cínica, ou não. Se tem medo de fazer dianética comigo.
A propósito, disse que era perigoso. Eu encolhi os ombros...
«Aviso-o desde já que isto é um desencontro no presente...»
«Dianética?, afinal quem vai fazer dianética comigo?»
«Você parou. Fiquemos assim. É perigoso.»
«Ia caindo do banco!»
«Não viu que lhe trocaram o banco por outro mais baixo?»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Não foi ele. Desligaram-me a mente analítica e disseram para descer como de costume...»
Então mudou o rumo do diálogo.
«Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens. Chegou o fim do tempo.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«O mesmo se passa comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo.»
«Quem tirou o banco? Dei uma queda aparatosa quando quis descer do banco, para trás, sem ver onde metia os pés. Foste tu?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Pronto. Não se aleijou, pois não?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu sou a Branca de Neve...»
«Acredita. Foi mesmo milagre. Tenho de substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade. Até pode ser destino.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a boca enorme de predador. Sim, fatalidade. Fatalidade é destino, é sorte. Boa ou má sorte.»
«Agora já entendi. Posso tratar-te por tu? Olha lá...»
«Sim.»
«Desculpa não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura...»
«Se não apareceste... Ou melhor, se chegaste tarde, então nunca mais chegaste...»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando trocaram o banco ou o chão fugiu para baixo. Ela regista tudo. É pena que seja tão desorganizada.»
«Bem, vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio. Tu é que disseste que querias ser iniciado.»
«O Artista é que disse que valia a pena. A propósito, ele entrou no teu laboratório secreto. Diz-me que entrou, que manipula o poder dos tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o cadinho da paixão. Diz-me que não estou enganado, que os ácidos reagiram, docemente, com as bases e resultou um pó branco que não devo tomar.»
«Quequeres que diga?»
«O pó. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Nunca estivemos. Estou em ondas curtas. E tu?»
«No passado.»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi no passado!»
«Não eras tu...»
«Que pena!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas do comboio do futuro, como podes ter existido?»
«Não te entendo. O comboio do futuro já está em cinzas? Então não tenho futuro. Chamas por mim e depois dizes que não me queres. Dizes que também não tive passado. Esqueces o que fomos e concluis que não pode haver futuro! Mas eu digo que sim. Eu sou tudo. O passado, o presente e o futuro.»
«Desengana-te. És a Esfinge.»
«Pergunta-lhe.»
«A quem?»
«A ela. Quando está assustada, o que faz?»
«Foge...»
«Inevitavelmente. Mas porquê?»
«Deixa isso. Não sabes saltar?»
«...?»
«Eu dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa e não lhe perdi o jeito. É como andar de bicicleta. A propósito, já ouviste falar na Borsic?»
«Nesse tempo eu era a gaivota...»
«Puro engano. E no copo que rodopiava no snack?»
«Com a Patrícia em frente ao Mário.»
«Vejo que te lembras. Decoraste a lição. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis.»
«Hoje ainda são longos?»
«Só a eternidade é mais longa!»
«Gostava de voltar um dia ao snack. O Mário ainda lá está a ver as gaivotas a planaram no céu. À espera de Patrícia. Um dia, a cadeira em frente ficou vazia e a Patrícia nunca mais apareceu.»
«Ela...»
«Foi o símbolo do teu desencantamento.»
«Sim. Nesse tempo. Mas a Manuela existiu (1) !»
«Estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo contigo, menos te conheço. Não sei se és o Mário dos negócios fracassados, ou o outro que se esconde atrás de si. Feitas as contas, vocês são três.»
«Três?»
«Contando com o autor.»
«Ah sim.»
«Eu também não sei. Mas afinal quem és tu?»
«Chamo-me Esfinge (2).»
«Esfinge?»
«Sim. Já fui do azul. Lembras-te?»
«Já foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul. E essa mulher já não sonha. Nem sequer atravessa desertos vermelhos. Vive na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar.»
«Essa mulher...?»
«Essa, sim, foi do azul. Ficou no passado remoto. Para sempre. Ninguém mais poderá ser do azul, entendes?»
«Se é assim, nem sequer existo ou também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Poder corrigir muita coisa que resultou mal. Evitar as guerras que ceifaram muitas vidas. Os terramotos.»
«Impossível. Não podes modificar o passado.»
«E o destino? Olha, não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa do pó branco!»
«Vou contrariar a regra. Talvez possa atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o maldito Artista que te levou nas viagens.»
«Fazes isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só há uma coisa...»
«Que coisa?»
«Estamos em passados distintos. Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«Talvez seja melhor voarmos. Não estamos a sonhar? Abre os braços. Isso. Não tenhas medo. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. O sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras, nem fantasmas brancos que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho.»
«Deixa-te de tretas e obedece.
«Pronto. Já abri os braços. Se calhar, queres agarrar-me. Conheço o truque. Os homens são todos iguais. Maliciosos. Envolventes. Fatalmente envolventes.»
«Tu é que és envolvente. O pó que me deste um vez não era a minha heroína. Essa, voou contigo sem norte...»
«Pois foi.»
«Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser outra viagem!»
«Eu não faço viagens. Bem sabes que somos diferentes. Aqui não há lugar para as alucinações.»
«Desculpa.»
«Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
«Faz de conta que vês. No azul...»
«Ah!, no azul... Agora me recordo. As gaivotas só voavam no azul. Pronto. Já agarrei a gaivota. Estou a voar muito alto. É maravilhoso voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Já estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele. É suave. Ainda não tinha dado conta. Os teus olhos?, deixa que os recorde. Foi há tanto tempo que os vi!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar (3).»
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Chamo-me Esfinge...»
«... e tentaste profanar o meu laboratório secreto com a força misteriosa do pó branco.»
«Tenho medo! O passado vai tragar-nos. Está tudo escuro! Não me largues a mão!»
«É tarde. É muito tarde.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio!»
«Frio, não direi. Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conheci, mas também há miragens perigosas nestas ruas que não existem. O futuro levou-as. E agora onde vou procurar-te? Só queria ver-te durante um segundo...»
«Deliras. Vais fazer-me mal?»
«Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu ando por aí. Algures. Se me encontrar, posso alterar o meu destino. E também o teu, se quiseres.»
«Algures é finalidade?»
«Boa pergunta. Mas agora chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo. Estou ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Já não sou a Esfinge. Perdi a identidade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo muito longo...»
«Entrámos no boqueirão. É o efeito da queda. A queda é longa. Eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte é eterna, diz antes assim...»
«Está escuro. É assim que se morre?
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro. Tu é que já morreste uma vez.»
«Enganas-te, sou a Esfinge. Não te lembras?
«Era só para confirmar. Sabes uma coisa?»
«Sim?»
«Chegámos.»
«E então?»
«Não consegui encontrar-te.»
«E a ti, encontraste-te?»
«Ainda não. Mas vai acontecer!»
«Já não sei quem sou!»
«Lembras-te do pó branco?»
«Que pó? Não sei de que estás a falar. Dói-me tudo. O corpo. A alma. Está muito escuro aqui. É assim...»
«...que se morre?»
«Não te vejo. Onde estás?»
«Aqui. Mas já não vale a pena.»
«Porquê, Mário?»
«Porque agora sei que não és a tal.»
«Ajuda-me!»
Na órbita do acontecer havia ténues vestígios de esperança. Ao longe. Onde voavam livres as gaivotas que já não picavam para a rebentação. Puro engano. Lamento. Não a ajudei e ela foi levada para sempre na viagem trágica do pó branco.
Se tenho remorsos?
Não sou Deus...