Vens de mansinho estender a toalha dos dias festivos e nada temos para festejar. A porta do quarto abre-se na calada da noite e, com uma leveza de pena, aqueces-me o corpo com o teu espírito gélido. Continuas discreta. Quase não dou pela tua “presença”. Nem tão pouco sei se estou a sonhar acordado ou se é o meu fictício que comanda a ação virtual em que me vejo envolvido. Só sei, ou melhor, admito, que vives agrilhoada a este mundo por uma causa que desconheço e não consigo entender por que me chamas constantemente.
Falas-me dos jardins do Senhor, mas não tenho a certeza que existem. Lá tenho as minhas razões. Se fosse verdade, não terias hesitado naquela manhã em que falaste na igreja pela minha boca e dei comigo a chorar as tuas lágrimas.
«Não me leves ainda!»
Foi estranho. Muito estranho.
Falas-me dos jardins do Senhor, mas não tenho a certeza que existem. Lá tenho as minhas razões. Se fosse verdade, não terias hesitado naquela manhã em que falaste na igreja pela minha boca e dei comigo a chorar as tuas lágrimas.
«Não me leves ainda!»
Foi estranho. Muito estranho.
Aconteceu numa das muitas manhãs em que apanhei o autocarro, perto da agência onde costumava entregar a maior parte dos boletins das várias sociedades de totoloto. Pouco passava das oito horas e o trânsito adensava-se. Por sorte consegui entrar num autocarro que não ia muito cheio. Subi sem dificuldade e mostrei o passe ao condutor. Fui andando pelo corredor e detive-me à distância de cerca de um metro da porta de saída. Não havia um único lugar sentado. Segurei-me com as duas mãos aos varões metálicos.
Tiro e queda. Logo a seguir comecei a sentir-me mal disposto, talvez porque os varões estavam demasiado frios. Talvez a indisposição passasse, pensei. Talvez porque sei lá o quê. Sentia-me cada vez pior. Gelado. Completamente gelado. Consegui aguentar mais uns minutos. Estava em Entrecampos. Eram só mais duas paragens ou três. Não. Não conseguia.
Saí de imediato e decidi fazer o resto do percurso a pé. Pouco passava das oito e meia. Tinha tempo de ser ainda o primeiro a chegar ao gabinete. Fazia-me bem apanhar o ar fresco da manhã.
Mas...?, não era aquele o caminho habitual. Desviava-me para poente e assim não ia encontrar o cruzamento.
Cheguei à avenida de Berna e preparei-me para atravessar para o outro passeio. Já do outro lado do passeio, parei. Que se passava? Uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais e a primeira coisa que ouvi foi a voz arrastada de um ancião. A voz parecia que parecia que vinha de muito longe. Era um padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção da Manuela.
Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz veio ainda mais de longe. O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Mais triste que a tristeza que os olhos da Manuela espelhavam. Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê.
«Não me leves ainda!» exclamei, numa súplica.
A voz era a minha mas não era eu!
Que queria dizer? Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Mas porque razão não conseguia suster as lágrimas que escorreiam com abundância pelo rosto?
O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer. Mas não era.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída.
Ainda não estava bem quando entrei no edifício do Ministério da Educação.
Fui o único a sair no sexto andar. Quase choquei com a chefe de Gabinete que vi, especada, na minha frente. Não me admirei com a sua presença. Não foi a única vez que encontrei a doutora Ivette no hall dos elevadores do sexto andar, por vezes mais cedo, controlando as entradas dos meus colegas do Projeto, mas nunca a vi tão pensativa e ausente como neste dia em que também eu estive ausente de mim mesmo.
Cumprimentei-a. Mal me falou. Encolhi os ombros e encaminhei-me para o gabinete.
Que terá pensado da expressão que viu no meu rosto?
Cumprimentei-a. Mal me falou. Encolhi os ombros e encaminhei-me para o gabinete.
Que terá pensado da expressão que viu no meu rosto?
Nada, pensei. Ela também estava esquisita.
Ficará por descobrir quem foi o ente que pediu nessa manhã, na igreja de Fátima, pela minha boca, para "não ser levado ainda" e por quem chorei no momento convulsivamente.
Ficará por descobrir quem foi o ente que pediu nessa manhã, na igreja de Fátima, pela minha boca, para "não ser levado ainda" e por quem chorei no momento convulsivamente.
Pediu para ser levado ou para ser levada?
Pediu para ser le
Já se passaram muitos anos e parece que não foste ainda de vez. Sou para ti um sonho impossível, quiçá também um amor impossível, embora nascido sublimemente. Estás do lado errado da vida. Acredita que nada há a fazer senão partires para sempre ou então eu admitir que não existes.
Saltas de um mundo para o outro para me confundires. Inventas momentos que não têm solução de continuidade e só duram o tempo suficiente para confirmar o meu desencantamento. E não satisfeita, também envias mensagens eróticas que se esfumam tão depressa como apareceram. Tu, um coração puro que, em tempos, recebeu neste mundo uma formação moral que nada tem a ver com a situação que vivi. Diz-me que não foste tu. Ao menos diz qualquer coisa, que não sabes romper entre paredes, por exemplo.
Se existes, gostava ao menos de ouvir a tua voz. Tu tens tudo e eu nada tenho. És o meu imaginário. Excitas-me. Despertas-me a curiosidade. E o que fica afinal? Nada. Nada, porque todas as noites, quando adormeço, morres neste mundo e voltas para o teu outro mundo (também dormes para “carregar as baterias”, ou nem por isso?). De manhã, regressas. E os dias continuam assim. Sempre monotonamente iguais. Aposto que para os dois. Falto-te eu, julgo acreditar. Mas não me faltas tu. Entende de uma vez por todas. Tu ou o teu “fantasma” que se recolham. Ponto final.
Desculpa aquele dia em que te amaldiçoei com a história do “Colar de Fantasia”. Estava desesperado e queria mesmo destruir-te de uma vez por todas. Acredita que me sentia revoltado com todo aquele modo de vida cinzenta em que me via atolado, por razões obscuras mas que pareciam vir de ti. Estivesses no meu lugar e terias feito ainda pior.
Sinto uma certa curiosidade em desvendar como são os teus “dias” aí desse lado donde me vês e não te vejo. Não te admires que faça um pedido.
Posso ao menos dar-te um beijo sem sentir o frio...?
Que me resta senão pedir-te para partires?
Já se passaram muitos anos e parece que não foste ainda de vez. Sou para ti um sonho impossível, quiçá também um amor impossível, embora nascido sublimemente. Estás do lado errado da vida. Acredita que nada há a fazer senão partires para sempre ou então eu admitir que não existes.
Saltas de um mundo para o outro para me confundires. Inventas momentos que não têm solução de continuidade e só duram o tempo suficiente para confirmar o meu desencantamento. E não satisfeita, também envias mensagens eróticas que se esfumam tão depressa como apareceram. Tu, um coração puro que, em tempos, recebeu neste mundo uma formação moral que nada tem a ver com a situação que vivi. Diz-me que não foste tu. Ao menos diz qualquer coisa, que não sabes romper entre paredes, por exemplo.
Se existes, gostava ao menos de ouvir a tua voz. Tu tens tudo e eu nada tenho. És o meu imaginário. Excitas-me. Despertas-me a curiosidade. E o que fica afinal? Nada. Nada, porque todas as noites, quando adormeço, morres neste mundo e voltas para o teu outro mundo (também dormes para “carregar as baterias”, ou nem por isso?). De manhã, regressas. E os dias continuam assim. Sempre monotonamente iguais. Aposto que para os dois. Falto-te eu, julgo acreditar. Mas não me faltas tu. Entende de uma vez por todas. Tu ou o teu “fantasma” que se recolham. Ponto final.
Desculpa aquele dia em que te amaldiçoei com a história do “Colar de Fantasia”. Estava desesperado e queria mesmo destruir-te de uma vez por todas. Acredita que me sentia revoltado com todo aquele modo de vida cinzenta em que me via atolado, por razões obscuras mas que pareciam vir de ti. Estivesses no meu lugar e terias feito ainda pior.
Sinto uma certa curiosidade em desvendar como são os teus “dias” aí desse lado donde me vês e não te vejo. Não te admires que faça um pedido.
Posso ao menos dar-te um beijo sem sentir o frio...?
Que me resta senão pedir-te para partires?
Parte e leva contigo todas as saudades, os olhares tristes, as mulheres de vermelho, tudo o que me faz pensar na tua cumplicidade. Parte e, por favor, descobre depressa o tal jardim. Depois, é fácil. Ficas à minha espera, porque um dia talvez vá ter contigo. Digo talvez, porque não sei se existe limbo e posso ficar aprisionado quando a minha hora chegar, ou se nada acontece senão a decomposição da matéria e a alma não sei se existe.
Quando vou ter contigo? Boa pergunta. Não sei. Talvez quando Ele quiser. Será que neste mundo vivemos o sonho e o resto é fictício?
Quando vou ter contigo? Boa pergunta. Não sei. Talvez quando Ele quiser. Será que neste mundo vivemos o sonho e o resto é fictício?
Então há um outro mundo paralelo onde a vida real vai acontecendo. Agora compreendo. Não me podes levar porque estou num sonho permanente e o outro mundo é alternante como um eletrão de localização imprevisível. Assim, não podes saber onde estou a cada momento. É então essa é a tragédia em que vives. Estou sempre no sítio errado.
De qualquer forma, porque a nossa união neste mundo foi impossível, lamento mas já não existes.
Só tenho uma dúvida: o que aconteceu naquela manhã, quando entrei na igreja de Fátima?

Sem comentários:
Enviar um comentário