sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Onde estão?

 



Onde estão os teus olhos doces
que ainda ontem beijava?
E onde está o teu corpo sedoso
que me embriagava de desejo?
As tuas mãos suaves... não as sinto!
E a tua boca que beijei  
vezes sem conta
quem foi que a roubou?

Que será o amanhã neste lugar ermo
onde vejo o meu mar bramindo
quiçá feliz por me ver voltar?

Mas não te tenho, amor!
Restam-me as ondas bravias
as tempestades interiores
e o desencanto de um fado
a soluçar na garganta
com versos que fiz só p'ra ti.

Para onde te levou a viagem
quem te encantou na miragem
doutro destino que te acolheu
destino de outro que não o meu?

Partiste já não te vejo...

Mas o futuro há de vir
lá dos lados do vento sul
com ondas levantando espuma
a chegar a mim uma a uma
sem ver a nossa a chegar.

Em noites de maré cheia
qando a saudade mais aperta
estou de novo à beira-mar;
e a chama que o coração ateia
aquece a praia deserta
na ânsia de te ver voltar...

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Quem espera por mim?

 




Hoje. Quantos são hoje, meu querido amigo que amavas o tédio e querias beber porque não tinhas sede? 
Assaltou-me uma dúvida metafísica que interferiu de seguida com força no fio do pensamento. No caso do fio do pensamento, não sei bem se há uma sequência lógica ou se o aleatório é seu rei e senhor. Bom. Fiquemos pelo fio do pensamento, sequencial ou não. Acho que tem razão de ser aquilo em que pensei e é muito simples de explicar. Quando era jovem considerava-me imortal porque tudo o que acontecia aos outros passava sempre ao meu lado e o que me acontecia não beliscava mesmo nada a minha integridade física. Podia espetar um ferro no joelho e resolver o problema com um lenço atado ao mesmo, como sucedeu uma vez. Por sorte a ferida sarou. Aos quinze anos, em plena Lisboa, quando os elétricos amarelos ainda abundavam e circulavam pelas ruas, lentos como tartarugas, atravessei a linha, junto ao saudoso Monumental, sem ver que vinha muito próximo um desses elétricos. Um som estridente da campainha pôs a funcionar os meus reflexos. Dei um salto para trás e safei-me por pouco. Doutra forma não estaria aqui a contar histórias. Não podia voltar a distrair-me porque só se vivia uma vez, embora pensasse nesse tempo que era imortal.
Passaram-se muitos anos e claro que tenho a certeza que ninguém é imortal e, portanto, também estou condenado a morrer. Nesses tempos da minha juventude a boa sorte esteve sempre do meu lado. Mas de facto ninguém fica cá eternamente. A única dúvida reside no dia. Assim, definitivamente, já lá vai esse tempo das parvoíces daquele menino e moço que tinha a certeza de ser imortal.
Em certos momentos todos arriscamos a vida. O jogo de póquer é um paradigma metafórico de quem aposta até ao extremo e tem dois simples pares, por vezes sendo surpreendido por alguém que desconfia que há bluff na costa e convence-se que tem um jogo superior. Então, põe na mesa as fichas necessárias para ver o jogo do adversário. E ganha, claro.
Com o inevitável decorrer dos anos, vamos fazendo menos bluff e tentamos evitar o encontro fatal com a morte, sabendo que ela virá um dia ter connosco, de mansinho ou com violência. Só temos uma hipótese. Tentar enganá-la, de modo a ela vir noutro dia e quanto mais tarde, melhor. Depois, um novo adiamento da chegada. E outro. Apuramos os sentidos, pensamos ainda mais em sobreviver, mas continuamos a deixar que o rio da vida nos arraste. 
Os amigos que conhecemos passam por nós e não voltam, alguns inevitavelmente levados pela força fatal da corrente, outros rumando por diferentes canais que os levaram para longe. Quanto às mulheres que amámos também não são eternas ou o amor por elas não era eterno, ou o amor delas volatilizou-se. São estas despedidas sucessivas que nos deixam cada vez mais sós, desesperadamente à espera que algo de trágico aconteça. Tudo isto para dizer que se passa também comigo o que está provavelmente a atormentar os outros. Também eu não quero que o dia da tragédia chegue e agarro-me a uma hipotética missão que tenho ainda para cumprir e que não sei qual é, mas vai dar-me mais uns tempos para ficar por cá. E há outra coisa em que penso, obcecado. O tal dia em que vai acontecer a mudança e, principalmente, no mistério já muito falado dos casos estranhos de quase morte. Segundo os relatos, alguém estará à espera, daquele que parte, no outro lado da porta, ou para lá do túnel que tem a luz mais intensa. Alguém que irá receber com carinho, com palavras de amor, o ente querido. Será ele (ou ela) quem o vai conduzir pelos prados verdejantes e floridos que também acredito existirem, nem que seja virtualmente. Tenho em mente que tudo à volta daquele que está de chegada a esses prados verdejantes, suspensos em nuvens de algodão, tudo será harmonia, beleza, amor e oferece uma sensação de felicidade nunca sentida. Não sei explicar, porque nunca lá estive, ou então não me lembro, como é o tal prado verdejante, onde não há maledicência, nem inveja, nem violência, e estão os entes que nos envolvem com o seu amor e a sua bondade. Materiais não são de certeza. Mas não consigo imaginar imagens como as da espiritualidade. Não sei se o prado verde, onde imagino localizar-me, está suspenso em misteriosas nuvens de algodão, ou se é coisa tão virtual como uma tela dos corações caídos onde também já tive as minhas ilusões. É um mistério insondável projetado para além da morte e que só posso descobrir partindo da premissa que é tão bom que nunca estarei de regresso para contar como foi àqueles que vivem mergulhados na mesma dúvida que hoje caiu sobre mim.
E quem espera por mim nesse momento de passagem para o outro mundo? Os entes que me foram muito queridos e que fui perdendo ao longo da vida, ou só aquele alguém que me amou mais que muito e, porque fui quem fui, não consegui fazer mais por ela do que fiz?
Repito. Não voltarei cá para contar como foi, mas acredito que, à medida que o destino dá as suas voltas e reviravoltas, como um berlinde multicolor lançado pelas mãos de uma criança, também assim a hipótese que admiti para ontem já é a hipótese que admito ser mais lógica hoje.
«Quem dos dois partir primeiro ficará à espera do outro...» 
Não me lembro, Talvez não tivéssemos combinado nada. mas na hipótese de ele
estar á minha espera, quando eu chegar, vamos à procura daquele belo prado suspenso em nuvens de algodão onde encontramos de certeza todos os outros entes que nos quiseram bem.
Hoje já não sou o Mário que fui e não vou explicar porquê. Ou, se quiser explicar, vou só dizer... porque sim. Sei o que quero, com quem vou e para onde vou. Pela primeira vez na vida não acredito que esteja a viver um amor impossível, nem serei jamais um "caçador" dos ditos amores. Se falar deles, estou a reportar-me ao passado ou a relatar tal como me foi contado.
E já que estou falando de amores impossíveis, só desejo ardentemente tornar real uma coisa impossível nesta Terra em que (dizem) estamos todos de passagem. Fundir o amador com a coisa amada.
Quem espera por mim?

Dia dos teus anos

 


Hoje era o dia dos teus anos...
Pobre coração frio que vês o dia e a noite pela fresta que guarda a morte na terra molhada de lágrimas onde o vento assobia fraco e a chuva cai de mansinho ensaiando uma canção dolente, sem brilho, sem chama, que é o teu choro soluçante abafado pela tumba que guarda a morte.
Foi ontem. Roubaram-me o coração de um anjo com olhar triste no dia em que deitaram rosas brancas para te esquecer. Mas eu nunca me esqueci de ti. Com remorsos ou sem remorsos, não interessa, nunca cortei rosas brancas para ti, nem as comprei. Rosas vermelhas, cor da paixão, sim. Se pudesse colheria todos os dias para ti, meu amor. E se as entrego a outras mulheres, fruto de paixões incontroladas e dos desígnios do destino, vou guardar comigo as últimas para um dia te oferecer. Simbolicamente, pois não sei onde encontrar-te quando chegar o dia da minha viagem.
Hoje era o dia dos teus anos. Ontem, os vermes comeram-te a carne. Já não tens mãos de veludo, nem corpo de adolescente. Mas à força de sonhar nesta ilha onde te espero e abraço a solidão, acredito que um dia vou encontrar-te, minha rosa vermelha em botão. As brancas não as quero. São sinal de morte. Essa, mataram. Deram de comer aos vermes o invólucro em que vieste a este mundo implacável em que estamos todos de passagem.
Acredito que não foste só um invólucro. Um corpo sem espírito. Foste e és mais. O mais que procuro e não encontro. Sei que existes, perdida algures. Mas não consigo ver-te. Quem sabe se, um dia, os sinais me indicam o caminho…
Mas se esse dia chegar, só o amor e a rosa vermelha são de ti o que me resta?
Apesar de não haver sinais nítidos que existes numa outra forma, sem matéria, e ter apenas recordações que se esbatem com o tempo, como ser hoje o dia dos teus anos, quando nos identificarmos só em espírito, então acredito que há de haver uma solução para te encontrar e nos amarmos na eternidade.
Estarás ai à minha espera?


Analogia

 


Tudo existe, no presente e no esquecimento...
O desejo que sempre tive de beijar os teus lábios. A saudade de um passado que ruiu. Tudo não passou de uma ilusão.
O nosso desejo...? Que é feito dele?
Há um abismo profundo a separar os caminhos de ontem e de hoje. Há mil promessas que imitam fachos de realidade. Só vejo uns olhos tristes e longínquos a fitarem-me em segredo, na contemplação hipnótica de um deus quase deus para ti e que afinal tinha pés de barro. Lamento, meu amor. Fui levado por impulsos que não consegui controlar.
Hoje, é doloroso viver no presente. Tão doloroso que chego a pensar que me esqueci de ti. Talvez por isso, para manteres ardente a chama, me envies miragens. Tão perfeitas e tão diferentes que sou arrastado na torrente do sonho que, mais tarde ou mais cedo, desagua em pesadelo.
Os teus lábios. Estão frios. Distantes. Tudo está perdido. Ainda ontem, quando nos encontrámos, eras a rapariga do vestido branco. Sempre te vi jovem. Quero acreditar que nunca foste a mulher que outro beijou. Há esquecimento semeado no presente que não tem calor para germinar. Ao mesmo tempo, o presente está esburacado pelo rebentamento de quimeras, rosas sem perfume que enfeitam mitos.
Desconheço quem nos afastou tão de repente. Eras a estrela que deixou de brilhar no caminho de um transviado. Jamais terei os teus lábios de sabor a morangos silvestres. Jamais te verei. Nem nas esfinges que me envias.
Mas um dia, vi-te. Vestida de branco. Olhos tristes e longínquos. Conheci-te logo ao primeiro olhar. Eras a mulher única destinada. A mulher que deixei fugir.
Os nossos projectos...?, lembras-te? Podia ter acontecido, mas o maquinista da vida levou-me por caminhos diferentes que me afastaram de ti. Se pudesse, quebrava as grilhetas que me prendem à solidão e subia ao teu mundo para conhecer o sabor a morangos silvestres dos teus lábios. Mas tudo não passa de um sonho. Hoje estão frios.
No céu brilhava uma estrela que era a luz da minha vida. Mas um dia parti. Depois, ouvi dizer que se apaixonaram por ti, estrela. Ouvi dizer que me esqueceste. Morreu o sonho. Só há presente e esquecimento. O presente de uma vida diferente, e o esquecimento da estrela que brilhava no céu.
Nunca mais te vi, nem nunca mais te verei. Mas há quem diga que te ouve chorar com pena de não teres sido minha!

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A ilha

 




Vai acontecer amanhã. Os corações famintos não podem morrer na longa travessia do deserto vermelho que lhes está destinado. Alguém decidiu. Cumpra-se. Atinja-se a ilha que não tem regresso. Procure-se na ilha a razão da nossa existência. Procure-se na ilha onde os dias são azuis. Como era azul a nudez da tua alma. Dizem que os dias azuis não têm ruídos torturantes nem imagens de angústia. Tudo neles é sereno e belo. Sereno o determinismo e belo o sonho de amanhã acontecer. Não vai haver gaivotas, nem mulheres de vermelho. O sorriso da Esfinge diluir-se-á, fatalmente, na clepsidra do “Novo Tempo da Rosa”
(1). Na ilha, vamos perder o mar de vista, os olhos de Patrícia e os copos em rodopio dos dias sem palavras ou de palavras já gastas. Depois, seguir o destino. Onde te espero. Onde me esperas.
Não. Não és a morte, embora sejas serena. E não és a vida, embora os teus seios generosos palpitem de desejos eróticos. És muito mais. Somos muito mais que insignificantes partículas do Todo Poderoso que se confunde com o nosso querer. A vontade é forte e amanhã vai acontecer. Nada de miragens que nascem e morrem. De frustração. Desespero. Ódio. Vingança. Amanhã será diferente porque a vontade é forte..
Que verdade?, imagino que perguntas.
A ilha é o meu desencantamento. Está comigo. Para além da vida e da morte. A ilha talvez sejas tu. O teu vestido azul
(2). O orgasmo impossível. O desejo absurdo de te possuir porque nunca te terei.
Vai acontecer amanhã. Adivinho o teu sorriso. Não é preciso mais que o teu sorriso. Exististe sempre. E agora que despertei, depois de cassetes suspensas, relógios falantes, mulheres de vermelho, chego à conclusão que o amanhã verdadeiro sempre existiu, embora noutra dimensão. Na ilha. No sonho de te ver azul e infinitamente perto. E dentro do sonho, teremos tudo. Porque o tudo é uma parcela do nada e este a força poderosa que sempre existiu em longos anos de permanência latente.
É bom voltar a ter-te. Os teus seios provocantes. Os teus lábios sumarentos que sabiam a morangos silvestres. A voz suave que sussurrava promessas eróticas do outro lado e tão perto. O vestido azul que escondia a nudez do teu corpo ondulante.
É já amanhã e foi ontem que te tive ou sonhei. Amanhã vai acontecer. 
Mas acontecer o quê?, se os meus pobres olhos poderão deixar de avistar a ilha onde me esperas e onde existem outras ilhas que já encontraram o caminho?


(1) A Esfinge tinha uma heroína
(2) Recordando... Já em férias, sonhava com o início do trabalho no Programa. Foi uma atração repentina pela Marta (Guapa) que não passou, no entanto, de fumo de verão!
O leão e o caranguejo

domingo, 3 de novembro de 2024

Cibele para sempre

 Na sala dos "descasados" chamavam-te Cibele...


Era uma vez...
...mas não será ainda desta vez!
Um dia...
«Que é isso? Não vale! Estás a fazer batota...»
«Não digas a ninguém mas sou uma jogadora profissional.»
«Conta-me outra história, Cibele.»
«Sério.»
«E então...?»
«Jogo póquer. Mas não vás contar na sala! Prometes?»


Claro que nunca contei.
Tantas palavras trocadas. Não estou aqui hoje para contar a nossa história. Só para te dar um recado:
«O perfume retornou...»

Esse teu sorriso...
Afinal não mentiste sempre!
Quero dizer também algumas palavras sobre ti e sobre mim. Poucas. porque a verdadeira história sobre a nossa passagem na tela, virá talvez um dia. Mas ninguém saberá qual foi a verdadeira história. Nem eu.
Nunca chegámos a despedir-nos. Perdi o teu contacto.
Hoje chegou o dia do fim.
Não quero ver lágrimas nos teus olhos melosos. Mostra-te sorridente à partida. Como se fosses a mulher mais feliz do mundo. Sorri mesmo que estejas a mentir. O nosso dia a dia não passou de uma agradável monotonia.
Vive a liberdade com outro espírito. Esquece. Afinal foi tudo uma ilusão. Estivemos perto e sempre muito longe.

«Estás longe. Por vezes chego a acreditar que estás muito perto.»
São as surpresas inevitáveis do mundo virtual, onde tudo pode acontecer e nunca acontece. Ah!, mas parecia mesmo real... Os corações a caírem num fundo rosa, digamos que foram uma grande ajuda para uma imitação quase perfeita do real.
Como me chamavas do outro lado do oceano...?
«Antônio!»
E eu... como te chamava?
Segredo! Que interessa um nome, se só existimos no virtual? Nos tais corações caídos, irremediavelmente a caírem, a caírem, como castelos altaneiros que perdiam, uma a uma, as pedras mestras. Deixemos o teu nome em paz, escondido sob as pedras que não sabem falar.
Nunca faltavas ao encontro. Vinhas sempre a correr só para falares comigo. Mas trazias sempre às costas um mundo ruim e implacável. O tal nó difícil de desfazer que tinhas dado na tua vida. Depois, o teu desespero que me contaminava. A vontade que tinhas de beber. O meu desespero. Ias mesmo beber! De preferência, muito. E eu não sabia o que fazer. Apenas admoestar-te, com doçura. E então, depois do segundo copo, acalmavas e já eras tu. Regressavas para o nosso mundo e ficávamos os dois, perdidos no ambiente rosa dos corações que não paravam de cair, cem por cento virtual, até que o efeito mágico passava sem que eu desse conta e dizias, invariavelmente:
«Vou tomar banho.»
Era o sinal da despedida. A tua partida para o mundo real, onde te perdias e eu não existia...
Os dias correram sempre entre altos e baixos. Eu, acreditando que no dia seguinte ia ser melhor; e tu...? 
Até que disseste que não voltavas. Ou melhor: não disseste. Não voltaste.
«Por nada. Você sempre estará no meu coração...»
Adivinhei que tinhas lágrimas nos olhos quando apareceram na tela estas palavras. Balbuciei qualquer coisa como:
«Acredita que vais desatar esse nó!»
E desapareceste da tela. Para sempre.
Daqui, onde me encontro, do outro lado do oceano, peço-te para matares os teus fantasmas que não cheguei a conhecer muito bem e que te obrigavam a beber. Vodka. Pois. De preferência. Bem forte. Gelado.
«Não olhes assim... moço bonito!»
Quem me dera agarrar a mocidade. Não sou moço, nem moço bonito.
Levaste lágrimas nos olhos. Talvez. Quero acreditar que sim. Talvez não tenham passado de “lágrimas de crocodilo”. Quem sou eu para te julgar, para ter a certeza, se nem sequer sei se eras uma na tela e outra no telefone. Tanta diferença, meu Deus! O que aconteceu na tela está gravado; nas conversas ao telefone, as palavras levou-as o vento (destas últimas, em que eras real, não quero saber; gostei mais da tua instabilidade no virtual, em que me pareceste mais real, carente, amante).
Um dia, quem sabe... as palavras que trocámos vão ser restituídas à tela. Será um regresso às origens. Às nossas origens.
Sorriste. É um sinal que concordas. Nem esperava outra coisa de ti. O belo não pode ficar amarrado aos preconceitos retrógrados, nem o puro acto de o pintar pode ser desvirtuado. Um dia estaremos de novo na tela, mas desta vez muito quedos, a ler, espiritualmente juntos, a tentar perceber em que é que errámos, ou se alguma vez errámos, ou limitámo-nos a ser personagens que tiveram que escrever mais que uma vez todas as linhas que ficaram gravadas para sempre. 
Se há um Deus que está acima de nós e é Ele que determina aquilo que nós chamamos de destino, quem somos para duvidar ou acreditar em qualquer hipótese? 
Se foi por acaso que nos encontrámos na tela das palavras virtuais, ou se aconteceu puro determinismo...?
«Saudade de vc. Mudei de casa. Estou na maior luta!»
«Estás nas mãos de Deus. Só Ele te pode valer.»
(Tu estavas na maior luta e eu tinha chegado à fronteira do possível...)
Então vá... não leves lágrimas. Sorri. Quero ver pela última vez o teu sorriso terno  que mentiu a “falar verdade”. E, por favor, desata-me esse nó maldito nó que te atormenta. Parte de vez. Não deixes espaço para os teus fantasmas. Livre. Parte totalmente liberta. Mas não voltes amanhã, como a andorinha! O nosso ninho foi desfeito, pequenina (era assim que te chamava, lembras-te?). Não há sinais de mim e de ti porque tudo se passou no virtual. Partiste para sempre, embora não tivesses chegado a partir. Voltarás um dia quando a tela trouxer o milagre da reposição do virtual em que sempre existimos.
Por que choram os teus olhos?
Às vezes quero acreditar que és real e estás mais perto de mim do que imagino!
Deixo-te uma flor branca porque só assim virás reclamar a tua situação de mulher real que também existiu fora da tela.
Afinal quero acreditar que não morreste, mas tudo o que se passou entre nós não foi senão uma grande mentira. 


Vai, meu fantasma, vai...

  





Vens de mansinho estender a toalha dos dias festivos e nada temos para festejar. A porta do quarto abre-se na calada da noite e, com uma leveza de pena, aqueces-me o corpo com o teu espírito gélido. Continuas discreta. Quase não dou pela tua “presença”. Nem tão pouco sei se estou a sonhar acordado ou se é o meu fictício que comanda a ação virtual em que me vejo envolvido. Só sei, ou melhor, admito, que vives agrilhoada a este mundo por uma causa que desconheço e não consigo entender por que me chamas constantemente. 
Falas-me dos jardins do Senhor, mas não tenho a certeza que existem. Lá tenho as minhas razões. Se fosse verdade, não terias hesitado naquela manhã em que falaste na igreja pela minha boca e dei comigo a chorar as tuas lágrimas.
«Não me leves ainda!»

Foi estranho. Muito estranho.

Aconteceu numa das muitas manhãs em que apanhei o autocarro, perto da agência onde costumava entregar a maior parte dos boletins das várias sociedades de totoloto. Pouco passava das oito horas e o trânsito adensava-se. Por sorte consegui entrar num autocarro que não ia muito cheio. Subi sem dificuldade e mostrei o passe ao condutor. Fui andando pelo corredor e detive-me à distância de cerca de um metro da porta de saída. Não havia um único lugar sentado. Segurei-me com as duas mãos aos varões metálicos. 
Tiro e queda. Logo a seguir comecei a sentir-me mal disposto, talvez porque os varões estavam demasiado frios. Talvez a indisposição passasse, pensei. Talvez porque sei lá o quê. Sentia-me cada vez pior. Gelado. Completamente gelado. Consegui aguentar mais uns minutos. Estava em Entrecampos. Eram só mais duas paragens ou três. Não. Não conseguia.
Saí de imediato e decidi fazer o resto do percurso a pé. Pouco passava das oito e meia. Tinha tempo de ser ainda o primeiro a chegar ao gabinete. Fazia-me bem apanhar o ar fresco da manhã.
Mas...?, não era aquele o caminho habitual. Desviava-me para poente e assim não ia encontrar o cruzamento.
Cheguei à avenida de Berna e preparei-me para atravessar para o outro passeio. Já do outro lado do passeio, parei. Que se passava? Uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais e a primeira coisa que ouvi foi a voz arrastada de um ancião. A voz parecia que parecia que vinha de muito longe. Era um padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção da Manuela.
Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz veio ainda mais de longe. O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Mais triste que a tristeza que os olhos da Manuela espelhavam. Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê.
«Não me leves ainda!» exclamei, numa súplica.
A voz era a minha mas não era eu!
Que queria dizer? Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Mas porque razão não conseguia suster as lágrimas que escorreiam com abundância pelo rosto?
O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer. Mas não era.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída. 
Ainda não estava bem quando entrei no edifício do Ministério da Educação. 
Fui o único a sair no sexto andar. Quase choquei com a chefe de Gabinete que vi, especada, na minha frente. Não me admirei com a sua presença. Não foi a única vez que encontrei a doutora Ivette no hall dos elevadores do sexto andar, por vezes mais cedo, controlando as entradas dos meus colegas do Projeto, mas nunca a vi tão pensativa e ausente como neste dia em que também eu estive ausente de mim mesmo. 
Cumprimentei-a. Mal me falou. Encolhi os ombros e encaminhei-me para o gabinete.

Que terá pensado da expressão que viu no meu rosto?
Nada, pensei. Ela também estava esquisita. 
Ficará por descobrir quem foi o ente que pediu nessa manhã, na igreja de Fátima, pela minha boca, para "não ser levado ainda" e por quem chorei no momento convulsivamente.
Pediu para ser levado ou para ser levada?
Pediu para ser le
Já se passaram muitos anos e parece que não foste ainda de vez. Sou para ti um sonho impossível, quiçá também um amor impossível, embora nascido sublimemente. Estás do lado errado da vida. Acredita que nada há a fazer senão partires para sempre ou então eu admitir que não existes.
Saltas de um mundo para o outro para me confundires. Inventas momentos que não têm solução de continuidade e só duram o tempo suficiente para confirmar o meu desencantamento. E não satisfeita, também envias mensagens eróticas que se esfumam tão depressa como apareceram. Tu, um coração puro que, em tempos, recebeu neste mundo uma formação moral que nada tem a ver com a situação que vivi. Diz-me que não foste tu. Ao menos diz qualquer coisa, que não sabes romper entre paredes, por exemplo. 
Se existes, gostava ao menos de ouvir a tua voz. Tu tens tudo e eu nada tenho. És o meu imaginário. Excitas-me. Despertas-me a curiosidade. E o que fica afinal? Nada. Nada, porque todas as noites, quando adormeço, morres neste mundo e voltas para o teu outro mundo (também dormes para “carregar as baterias”, ou nem por isso?). De manhã, regressas. E os dias continuam assim. Sempre monotonamente iguais. Aposto que para os dois. Falto-te eu, julgo acreditar. Mas não me faltas tu. Entende de uma vez por todas. Tu ou o teu “fantasma” que se recolham. Ponto final.
Desculpa aquele dia em que te amaldiçoei com a história do “Colar de Fantasia”
. Estava desesperado e queria mesmo destruir-te de uma vez por todas. Acredita que me sentia revoltado com todo aquele modo de vida cinzenta em que me via atolado, por razões obscuras mas que pareciam vir de ti. Estivesses no meu lugar e terias feito ainda pior.
Sinto uma certa curiosidade em desvendar como são os teus “dias” aí desse lado donde me vês e não te vejo. Não te admires que faça um pedido. 
Posso ao menos dar-te um beijo sem sentir o frio...?
Que me resta senão pedir-te para partires? 
Parte e leva contigo todas as saudades, os olhares tristes, as mulheres de vermelho, tudo o que me faz pensar na tua cumplicidade. Parte e, por favor, descobre depressa o tal jardim. Depois, é fácil. Ficas à minha espera, porque um dia talvez vá ter contigo. Digo talvez, porque não sei se existe limbo e posso ficar aprisionado quando a minha hora chegar, ou se nada acontece senão a decomposição da matéria e a alma não sei se existe.
Quando vou ter contigo? Boa pergunta. Não sei. Talvez quando Ele quiser. Será que neste 
mundo vivemos o sonho e o resto é fictício?  
Então há um outro mundo paralelo onde a vida real vai acontecendo. Agora compreendo. Não me podes levar porque estou num sonho permanente e o outro mundo é alternante como um eletrão de localização imprevisível. Assim, não podes saber onde estou a cada momento. É então essa é a tragédia em que vives. Estou sempre no sítio errado. 
De qualquer forma, porque a nossa união neste mundo foi impossível, lamento mas já não existes.
Só tenho uma dúvida: o que aconteceu naquela manhã, quando entrei na igreja de Fátima?

sábado, 2 de novembro de 2024

Inventei-te

 




Nas noites longas dos longos dias azuis abraço o vazio e julgo que és tu. O teu corpo escorrega pelas minhas mãos deixando sensações por descobrir. Os lábios, que sabiam a morangos silvestre, fecham-se desencantados.
O magnetismo das ligações invisíveis. O luar dos teus olhos refletido noutros olhos (quais os verdadeiros?), o riso descontrolado que prometeu vingança. Inventei tudo. O contacto de mãos agarradas que falaram de segredos e esconderam os segredos. As profecias que saíram da tua boca. Enfim, inventei-te para esconder a verdade e mostrar a mim próprio que não eras a minha verdade.
Trouxe outra do passado. Mais uma vez. Trouxe-a para destruir o sonho à nascença. Para me dilacerar a alma. Inventei-te mais uma vez porque a verdade aconteceu naquele estranho tempo que não tinha tempo.
Aqui estamos de novo. Eu e um fantasma que se esconde nas profundezas insondáveis do inconsciente e vai devorando neurónios bloqueados. A sua fome é insaciável. A ânsia de destruir tornou-se irreversível.
E o luar dos outros olhos?
«Dos meus olhos!» dizes.
Teus? A quem os roubaste? 
Já não volta a acontecer. Nunca a terei. Passou por mim como tu passaste. Roubaste um sonho. Primeiro amor... estranha sensação de posse! Que tens a dizer do primeiro amor? Acaso não existiu? Existiu, sim. Mas no outro tempo. E tu vens agora roubar este tempo!
Não quero ouvir mais o teu riso irónico. Deixa que ela venha ao meu encontro. Deixa acontecer. Tens uma eternidade para esperar por mim e ainda agora nasceu a madrugada...

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A última onda

 


Hoje a minha vida é uma onda que se levanta e não para de avançar, crescendo até se esbater a beijar docemente as areias da praia onde tu estavas, miragem de um sonho que nasceu na onda que ao largo se levantou, galgando barreiras impossíveis.
Na minha vida houve altos e baixos ondas que se levantaram sem azimute e outras que prometeram a eternidade, mas logo mergulharam no lago adormecido com monstros devorando no silêncio o sonho das praias proibidas.
Um dia virá a última onda romper um delta de novos sonhos e a minha vida será essa onda a crescer com o azimute da esperança até beijar as areias douradas ao longo da praia deserta onde tu estiveste ontem.

sábado, 19 de outubro de 2024

Cartas de amor

  


Hoje em dia não é comum um apaixonado daqueles do catálogo de Lineu escrever uma carta de amor. Os tempos são outros. De qualquer forma, estou fora do contexto e só por isso aqui estou a escrever-te no aconchego da minha solidão. Não é a primeira carta que te escrevo. Foram muitas as cartas que trocámos. Talvez esta seja a última. Poemas, esses escrevi alguns só para ti. Talvez para nada.  Nunca os lerás. Só nós sabemos porquê. Segredo absoluto. Mas, apesar das entrelinhas,   resolvi escrever a carta. E não é uma carta vulgar porque as cartas vulgares têm sempre conteúdos e objetivos vulgares. Esta é diferente. Porquê? Porque é a última carta? Mas que espécie de carta posso escrever para ti, quando sei antecipadamente que vai ser lida pelos poucos todos que acederem a este espaço e talvez nunca seja lida por ti?
O mais estranho é que o nosso tempo já foi esmagado há muito pelas suas próprias engrenagens, pois anda sempre para a frente e nada há  que o faça parar, muito menos  pressioná-lo para voltar atrás. Eu fui direito ao futuro nos braços do tempo e tu ficaste parada.  Os sonhos morreram há muito e, portanto, seria lógico admitir que já não te amo ou que te esqueci. Então, porque estou a escrever-te esta carta, se a tua órbita do acontecer deixou de cruzar-se com a minha e de outro qualquer? Só posso admitir ser uma carta que peca por partir atrasada, não porque me atrasei, não porque me esqueci dela no fundo de uma gaveta, daquelas que se abrem quando se procura outra coisa. Não interessa saber a verdade. O cerne da questão não reside na verdade, pois lança a dúvida e ficamos na mesma. É totalmente diferente. Só quero descobrir o motivo porque escrevo agora, se já não posso amar-te como amei ontem. E não explico mais. Apenas  lanço no ar uma pergunta cuja resposta  sei há muito. Porquê? Porque partiste sem me avisares (1)?

Amei-te ou amo-te. Tanto faz para o caso Não devia ter feito esta confissão dúbia. Mas não tem importância porque não vais tirar benefício. O tempo da mulher única acabou. Esse tempo que era só nosso e que agora nada vale. Só em pensamento. Pronto. Abri a ponta do véu. Só a ponta. Se o tempo ainda não apagou a tua imagem na minha memória, fica cá comigo. Ponto final. 

Transfiguração...
Sabes como te vejo sempre? É terrível, mas tenho que dizer-te...
Sozinha, deitada na cama, de olhos postos no teto, sonhando acordada com um amor que tarda em voltar. E esse amor não pode vir de mim. Contudo, estou a escrever para ti. Parece não ter lógica. Não tem mesmo. Mas a vida é assim. Um dia, abriste muito os braços e julguei que era para mim. Enganei-me. Passaste por mim naquele campo aberto pintado pelo rubro das papoilas. E assim, perdi-te. Foste para o teu suposto príncipe encantado, um tal que afinal teimou em viver protegido pela neblina das indefinições. E foi assim. Nunca saberás se ainda posso ter amor por ti, pelos teus olhos gaiatos, provocantes, de gazela espantada. Pela tua voz doce que não se apagou de todo nos meus sonhos. E sabes uma coisa? Não sabes, nem saberás. É lógico. E como jamais vais ler esta carta, digo e afirmo que te tenho ainda  no pensamento. Num modo esbatido. 
É certo que te amei. E tu? Nunca me disseste, como não te disse abertamente gostar de saber o que nunca me disseste. Tenho a certeza que gostaste sempre de ser amada. E foi esse um dos meus males. Mas, paciência. Será outro o caminho desta carta. Talvez vá perder-se no fundo de uma gaveta. Ou tornar-se em cinza. Ou até talvez nunca  tenha escrito a carta e apenas pensado. Não sei. Agora, é tudo muito nebuloso.

Gostava de voltar a ver-te um dia. Ultrapassaste os meus anos por causa do teu tempo que acelerou. Quase parei depois de ter corrido para o horizonte de eventos de um buraco negro, à espera de ver-te, num derradeiro relance, antes de mergulhar no nada. 
Não posso chegar a ti. Apenas sonhar e ver que continuas bonita como sempre foste, mesmo depois dos anos terem passado. Que continuas provocante no andar. E sabes uma coisa? Não sabes. Nunca te disse. Eras um fruto apetecido. Daqueles sumarentos que apetecia apertar.Um morango maduro, por exemplo, que teria gostado  degustar. Muito. Nem imagino o orgasmo do sabor...

Parece que estou a ver-te sorrir e a encolher os ombros, talvez resignada, porque também não estás a ver o meu sorriso e a ouvir que não respondia por mim quando me provocavas com o teu encanto.

Que parvo fui naquele dia em não saber aproveitar de todo o momento de fraqueza em que te entregaste (2)! Lembras-te? Não te lembras tu de outra coisa. Esteve por pouco o acontecer e talvez tenha acontecido noutro universo paralelo. Mas deixemo-nos de fantasias. Fica a dúvida. Melhor ainda, um segredo que ambos guardámos no futuro baú do futuro onde estão escondidas as nossas recordações.

Esta carta já vai longa. Vou confessar-te uma coisa. Não contes a ninguém. Queria escrever uma carta de amor copiada de outra que encontrei esquecida lá no fundo muito fundo de uma gaveta. Não o fiz. Era e não era para ti. Foi uma boa decisão.
Olha, responde na volta do correio a esta carta que não irás receber. Nunca mais me esqueças, mas continua a fugir de mim, como sempre o fizeste porque eu te pedi. E, por favor, olha para trás. Tal como pedi naquele poema. Como não podes responder, fica aqui dito que só eu sei quanto te amei e nunca, mesmo nunca, te disse.
Vem ter comigo, nem que seja em sonhos. Estou à tua espera. Talvez que um dia nos encontremos ao crepúsculo da mesma lareira até o último tição se apagar de vez. Tinha muita coisa para dizer-te e não disse nada. Agora é tarde. Não faz mal. Até porque nunca vais ler esta carta, onde talvez minta ao escrever que te amo, que sempre te amei. 
Bla bla bla. 

Fiz borrada naquele fim de tarde quando li a outra um poema dedicado a ti. Efeito do vinho branco que eu e ela bebemos. Mas não peço perdão. Porquê? Só o faço quando agradeceres as "utopias" que te dediquei. Foram todas para ti e tu fingiste que julgavas que não eram. Gostavas dos meus poemas mas interiorizaste que era só poesia. Nem perguntaste para quem eram. Ficámos em meias tintas. O ideal para me usares como usaste quando encobri aquela falta a uma reunião quando os teus olhos suplicantes me hipnotizaram. A tua dissertação que passei no velhinho Word. O meu livro de poemas e a cassete que escondeste da tua irmã. Muito mais porras que não interessa trazer para aqui. Mas não foram provas de amor. Queria apenas tirar vantagens. Pressionar-te. Fazer-te pensar. "Tão bom homem que é! Não é justo o que estou a fazer, mas preciso dele ainda". E outra vez bla bla bla com esses teus olhos suplicantes a mentirem. Pronto, usaste-me e descartaste-me. A Odete tinha razão. O quê?  Ah...!, o punhal. Confessa que ela nos atraiçoou. Se fui para a cama com ela? Não podes ver o meu sorriso. Assim, fica na dúvida se foi bom teres sido preterida. Bom para quem? 
Que fazes neste momento? Uma referência. Por exemplo,são cinco da tarde e é domingo. Chega? Não tem importância saber onde estás porque não vais ler esta carta, conforme já repeti várias vezes. Mesmo que lesses, ainda não confessei, do fundo do coração que te amo. Amava-te, sim. Agora não sei. A outra, esqueci, Partiu para o constelado do céu e nunca mais quis saber de mim. 

Aquele dia que te encontrei no Centro Comercial foi muito bom, mesmo que nada de especial se tivesse passado. O que aconteceu fica entre nós. Podes mentir que eu respondo com outra mentira. Depois, um ponto a meu favor. Conhecia-te há pouco mais de uma semana e fiquei surpreso quando mostraste o teu desagrado por eu dizer ao Alfredo que tinha estado contigo no Centro. Desejo de secretismo apenas, ou ele fez algum comentário que não gostaste de ouvir? 

 Bom, queria dizer ainda... Mas esta carta já vai longa. Provavelmente vou escrever outra mesmo que não tenhas lido esta. Mentira. Esta carta vai ser, definitivamente, um exemplar único e não repetido. Como no caso do livro de poemas que te ofereci. Uma edição de dois exemplares. Um para mim e outro para ti. 
Para acabar, faço uma pergunta: gostaste de ser amada?
E mais outra: onde moras desde aquele dia em que fugiste?
Um beijo sem retorno.

Mário.

P.S. Afinal é  só uma carta que estou a escrever na solidão do meu quarto?
 Sei que não a vais ler, porque estás , do lado errado da vida. 
Como estavas bonita naquela noite do cinema!
Um beijo quente no teu rosto gélido.
António

(1)   Manuela 

(2)   Adeus, utopia