O CAÇADOR DE AMORES IMPOSSÍVEIS
ESTE ESPAÇO PERTENCE A A. M. FONSECA. SÓ ELE SABE CAÇAR AMORES IMPOSSÍVEIS.
MÁRIO DESCOBRE, ILDEFONSO CONSTRÓI, FONSECA TRANSFORMA À SUA IMAGEM. O TEMPO,
QUE É O COMEÇO DE TODAS AS COISAS, TEM A ÚLTIMA PALAVRA. E "EU QUE NÃO EU
MAS EU"?

Repouso
mais uma vez os olhos em ti, mar salgado, mar embravecido. Quantos lares
destroçaste!, quantas lágrimas foram vertidas para que fossem teus, ó mar!
Eu, que vejo onde acabas e não começas, que cheiro a maresia das tuas ondas que
se desfazem em espuma... eu, que falo contigo o silêncio das palavras, que te
acalmo e embalo até adormeceres e ficares calmo, que tenho o dom de derramar as lágrimas e
diluir o sal da tua bravura... eu, por quem esperas há muito e não me entrego
enquanto tiver a magia de vencer, mar salgado, tenebroso, que beijas, por vezes
com doçura, as areias da praia e também fazes recuar, com violência, as rochas
que bloqueiam o teu avanço, eu... enquanto o coração bater e a razão ordenar, mar
tenebroso, hostil, não penses que vou ouvir as canções das tuas mil sereias nos
caminhos onde estou a passar!
O outro (1) que talvez não fosse eu, esse ainda está por aí. No fundo. A procurar. Ninguém o
viu regressar. Nem vai ver. Abriste o caminho e ele passou porque só queria
procurar. E falava contigo e tu ouvia-lo. Parecia que o ouvias.
Nunca mais ficou sozinho, mas também ninguém mais o amou. Mar
adentro, mar adentro avançou. Procurou, procurou. Até ficar no fundo do mar.
Ele, que te acalmava (estranho dom!) e que fingias escutar. Alguém que
também já não sou. Tinha a força, tinha o dom. Lia em ti o que ninguém lia. Via nas gaivotas o que também ninguém via. Gaivotas de asas feridas a descerem para
a rebentação, também como ele, procurando, procurando. Até que não voltavam.
Esse homem, que tinha a força e o dom, que amava as plantas e os astros, que chorava
as mágoas da vida, as tragédias dos que procuravam em ti o sustento, foi
tragado pelo passado que não conseguiu esquecer. Esse homem, que te acalmava nos
dias em que te erguias irado e lançavas as tuas ondas salgadas sobre a praia
que tanto amavas. Que falava contigo e tu ouvias, calado, mar feito
lago, e que trazia para junto de ti um sonho antigo que te acalmava... que
procurava esse homem? A sua solidão? E que lhe deste, ó mar?
Não o vejo. Não o sinto. Aquele que te acalmou e mar adentro
avançou.
Estás irado. Já não o tens. Nem sabes que outros mares o levaram. Agora já ninguém consegue acalmar-te. As tuas ondas estão cada vez mais altas. Bem sei. Não as
vou desafiar. Aprendi a lição de saber perder. Agora, só quero vencer. Porque o
outro gostava de todos. E eu quero só gostar de mim. Aprender a não dar. A não sonhar. A partir e a chegar.
Estou junto a ti. Já reparaste? Desta vez não te vou acalmar. Bem podes mostrar o
caminho aberto porque não vou em ti procurar. Lança as tuas ondas sobre as
rochas, leva contigo a areia e os seixos, os barcos e os incautos, mas não
mostres o caminho que mostraste ao outro. Sê, principalmente, como és. Como te
vejo. Um mar bravio e salgado. Sem vida. Sem alma. Sem segredos para desvendar.
Não. Não me abras o caminho porque o meu caminho é outro. Fechou-se o coração. Agora
sou diferente porque descobri que não sou quem fui, aquele que só dava e não
recebia.
Estranho dom, o de dar e não receber. Não consigo imitá-lo, mas estou também
a procurar à minha maneira. A abraçar o mundo e a fugir das
tuas sereias melodiosas e fatais.
Para sempre? O que é para sempre se o sempre não se alcança?
Espera por mim. Um dia, no limiar da
eternidade as tuas águas vão abrir de novo o caminho e
guardar o segredo das minhas cinzas, das memórias apagadas. E sob ti, em berço de espuma branca e salgada, irei então adormecer na
semente que amanhã germinará para mais um regresso (quem sabe?). Sempre à procura, mas não em
ti, de uma alma gémea que existe algures, desencantada como eu, sofrida, mal amada,
ressurgida também das cinzas.
Agora que te mostrei esta nova visão, é tempo de partir. É tempo
de dizer-te adeus. Os meus olhos não mais se deixarão perder no imenso deserto
que foste e que és. Perdoa-me, mar. Agora vejo-te assim.
«E o outro homem que acalmava o mar...?» perguntarás.
Esse, alguém o inventou. Ou outro mar o levou. Outro mar irado, tão irado como tu. De ondas
levantadas, mas sem tempestades interiores. Por vezes um mar feito lago.
Procurar...?, procurar o quê em ti, se nem ainda me encontrei?
Procurar, sim. Mas ela. A causadora das minhas tempestades
interiores e que nada têm a
ver contigo, ó mar!
Diz-me, mar, onde estão os seus olhos que beijava e onde está o seu corpo
que me embriagava de desejos? E as mãos macias que já não sinto? E o amor que outro destino a roubou? E a rosa que lhe ofereci e fatalmente secou? E que outro mar a levou?Não sei o que será de mim neste lugar ermo onde vejo o mar feliz só por eu ter voltado.
Porque já a perdi, restam-me as tuas ondas bravias e as tempestades doentias.
Mais o desencanto do meu fado a soluçar na garganta os versos que fiz para ela.
Não sei para onde a levou a viagem e quem a encantou na miragem doutro fado que a acolheu.
Comigo só ficou o mar a bramir, e eu à espera do futuro que há de vir dos lados do
vento sul, com ondas que levantam espuma e passam todas, uma a uma, pela primeira que já parou!
E tu, mar raivoso, chama o vento que ergue as ondas. Varre a praia. Destroça
os barcos. Já sei que vou outra vez naufragar.
Mas antes de ergueres as ondas, fala comigo das promessas de amor que não foram cumpridas, meu mar interior. És testemunha. Só tu sabes, mar salgado, das promessas de amor. Dos corpos enlaçados. Do
desejo. Da voragem. Da fuga.
Para onde foi isso tudo, ó mar?
Ouves-me e sorris. Estás de volta. Já tardavas. Há muito que não te acalmava.
E o caminho continua aberto. Não sei que mais queres de mim. Talvez que fale contigo, como o outro fazia. Talvez te cales a escutar.
Chegou outra vez o tempo. Acalma as tuas águas e adoça o teu sal. E espera por mim.
Em noite de lua cheia, quando a saudade mais aperta, estou de novo à beira-mar.
A chama que o coração ateia, aquece a praia deserta e fico à espera da última onda que amanhã vai chegar...
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