Hoje. Quantos são hoje, meu querido amigo que amavas o tédio e querias beber porque não tinhas sede? Assaltou-me uma dúvida metafísica que interferiu de seguida com força no fio do pensamento. No caso do fio do pensamento, não sei bem se há uma sequência lógica ou se o aleatório é seu rei e senhor. Bom. Fiquemos pelo fio do pensamento, sequencial ou não. Acho que tem razão de ser aquilo em que pensei e é muito simples de explicar. Quando era jovem considerava-me imortal porque tudo o que acontecia aos outros passava sempre ao meu lado e o que me acontecia não beliscava mesmo nada a minha integridade física. Podia espetar um ferro no joelho e resolver o problema com um lenço atado ao mesmo, como sucedeu uma vez. Por sorte a ferida sarou. Aos quinze anos, em plena Lisboa, quando os elétricos amarelos ainda abundavam e circulavam pelas ruas, lentos como tartarugas, atravessei a linha, junto ao saudoso Monumental, sem ver que vinha muito próximo um desses elétricos. Um som estridente da campainha pôs a funcionar os meus reflexos. Dei um salto para trás e safei-me por pouco. Doutra forma não estaria aqui a contar histórias. Não podia voltar a distrair-me porque só se vivia uma vez, embora pensasse nesse tempo que era imortal.
Passaram-se muitos anos e claro que tenho a certeza que ninguém é imortal e, portanto, também estou condenado a morrer. Nesses tempos da minha juventude a boa sorte esteve sempre do meu lado. Mas de facto ninguém fica cá eternamente. A única dúvida reside no dia. Assim, definitivamente, já lá vai esse tempo das parvoíces daquele menino e moço que tinha a certeza de ser imortal.
Em certos momentos todos arriscamos a vida. O jogo de póquer é um paradigma metafórico de quem aposta até ao extremo e tem dois simples pares, por vezes sendo surpreendido por alguém que desconfia que há bluff na costa e convence-se que tem um jogo superior. Então, põe na mesa as fichas necessárias para ver o jogo do adversário. E ganha, claro.
Com o inevitável decorrer dos anos, vamos fazendo menos bluff e tentamos evitar o encontro fatal com a morte, sabendo que ela virá um dia ter connosco, de mansinho ou com violência. Só temos uma hipótese. Tentar enganá-la, de modo a ela vir noutro dia e quanto mais tarde, melhor. Depois, um novo adiamento da chegada. E outro. Apuramos os sentidos, pensamos ainda mais em sobreviver, mas continuamos a deixar que o rio da vida nos arraste.
Os amigos que conhecemos passam por nós e não voltam, alguns inevitavelmente levados pela força fatal da corrente, outros rumando por diferentes canais que os levaram para longe. Quanto às mulheres que amámos também não são eternas ou o amor por elas não era eterno, ou o amor delas volatilizou-se. São estas despedidas sucessivas que nos deixam cada vez mais sós, desesperadamente à espera que algo de trágico aconteça. Tudo isto para dizer que se passa também comigo o que está provavelmente a atormentar os outros. Também eu não quero que o dia da tragédia chegue e agarro-me a uma hipotética missão que tenho ainda para cumprir e que não sei qual é, mas vai dar-me mais uns tempos para ficar por cá. E há outra coisa em que penso, obcecado. O tal dia em que vai acontecer a mudança e, principalmente, no mistério já muito falado dos casos estranhos de quase morte. Segundo os relatos, alguém estará à espera, daquele que parte, no outro lado da porta, ou para lá do túnel que tem a luz mais intensa. Alguém que irá receber com carinho, com palavras de amor, o ente querido. Será ele (ou ela) quem o vai conduzir pelos prados verdejantes e floridos que também acredito existirem, nem que seja virtualmente. Tenho em mente que tudo à volta daquele que está de chegada a esses prados verdejantes, suspensos em nuvens de algodão, tudo será harmonia, beleza, amor e oferece uma sensação de felicidade nunca sentida. Não sei explicar, porque nunca lá estive, ou então não me lembro, como é o tal prado verdejante, onde não há maledicência, nem inveja, nem violência, e estão os entes que nos envolvem com o seu amor e a sua bondade. Materiais não são de certeza. Mas não consigo imaginar imagens como as da espiritualidade. Não sei se o prado verde, onde imagino localizar-me, está suspenso em misteriosas nuvens de algodão, ou se é coisa tão virtual como uma tela dos corações caídos onde também já tive as minhas ilusões. É um mistério insondável projetado para além da morte e que só posso descobrir partindo da premissa que é tão bom que nunca estarei de regresso para contar como foi àqueles que vivem mergulhados na mesma dúvida que hoje caiu sobre mim.
E quem espera por mim nesse momento de passagem para o outro mundo? Os entes que me foram muito queridos e que fui perdendo ao longo da vida, ou só aquele alguém que me amou mais que muito e, porque fui quem fui, não consegui fazer mais por ela do que fiz?
Repito. Não voltarei cá para contar como foi, mas acredito que, à medida que o destino dá as suas voltas e reviravoltas, como um berlinde multicolor lançado pelas mãos de uma criança, também assim a hipótese que admiti para ontem já é a hipótese que admito ser mais lógica hoje.
«Quem dos dois partir primeiro ficará à espera do outro...»
Não me lembro, Talvez não tivéssemos combinado nada. mas na hipótese de ele
estar á minha espera, quando eu chegar, vamos à procura daquele belo prado suspenso em nuvens de algodão onde encontramos de certeza todos os outros entes que nos quiseram bem.
Hoje já não sou o Mário que fui e não vou explicar porquê. Ou, se quiser explicar, vou só dizer... porque sim. Sei o que quero, com quem vou e para onde vou. Pela primeira vez na vida não acredito que esteja a viver um amor impossível, nem serei jamais um "caçador" dos ditos amores. Se falar deles, estou a reportar-me ao passado ou a relatar tal como me foi contado.
E já que estou falando de amores impossíveis, só desejo ardentemente tornar real uma coisa impossível nesta Terra em que (dizem) estamos todos de passagem. Fundir o amador com a coisa amada.
Quem espera por mim?