terça-feira, 9 de maio de 2023

Porque foi?

 


Porque foi?, cabelos longos, trigueira bela, sorriso engraçado?
Era setembro. Foi o tempo de amar. Tinhas razão. Também foi ontem. Há muito tempo, quando as folhas das árvores caíram, amarelecidas. O seu tempo chegara ao fim. O teu rosto tristonho, bem como esse olhar, que nunca esquecerei, perdido para lá do horizonte denunciava a certeza do fim de um ciclo. Do nosso ciclo. De uma relação a dois sem força para continuar. Pensei eu.
Foi em setembro. Fui o teu destino, mas perdi-te porque, tal acontece com as folhas das árvores que desistem de viver, também partiste (Manuela). Cedo. Demasiado cedo para quem tinha a força de viver e viu-se perdida. Para ti, essa força natural já nada valia. Pensaste bem ou mal. Foi o que pensaste. Pensaste e eu segui por novos caminhos e tive várias paixões inconsequentes. Tudo eram desencantos para um desencantado que procurava, alucinado, a tua imagem que revia minuto a minuto. Afinal estavas do lado errado da vida. Para lá da porta. Num outro mundo onde não podia chegar, apesar das mil e uma cortinas que ia descerrando. Por mais que me enviasses sinais havia sempre novas cortinas na minha frente. E cada vez mais opacas. Não me restava outra hipótese senão desistir.
Bem sei que partiste de asas feridas. Culpa minha? Mas partiste sem um adeus. Sem avisar. E foi acontecer ironicamente no tempo dos cravos. Do alvor da liberdade. E tu presa num mundo de onde não podias mais voltar.
Uns anos mais tarde, quando a paixão já estava a adormecida começaste a enviar-me sinais, parecendo dizer estou aqui, à tua espera.  Foram momentos de angústia. Imaginava a tua solidão. A tal solidão que acompanha todos os que partem. Eu sei. Morreste só. Como todos aqueles que morrem. Mas escolheste a pior forma de morrer. Desististe. 
Será que te arrependeste à hora da partida? 
Não sei. O certo é que senti o teu desespero nesse dia fatal...
 
Uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais. Ouvi logo uma voz arrastada de um ancião que parecia vir de muito longe. Era o padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção de uma pessoa falecida. Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz vinha ainda de mais longe.  O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê.
«Não me leves ainda!»
 Mas não era eu!
Que queria dizer? 
Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Mas não conseguia suster as lágrimas.
Deixei que continuassem a correr. O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída.

Segui a minha vida. Mal ou bem. Sempre de beiral em beiral...
Até conheci a Maria e joguei todas as cartas do baralho para que desse certo. Por coincidência, ela também apareceu em setembro na minha vida. Talvez por isso, para que não acontecesse o que seria fatal para ti, dei com outro obstáculo. A Maria era muito mais nova e eu deixei que soltasse os cabelos ao vento. Sabes o que quer dizer? E porque acabou? Não. Não foi o punhal dourado que ela me ofereceu e que interpretei como um sinal de traição que me conduziu à Odete. Isso desconfiei na altura. Hoje penso que que foste tu. Estavas desse lado e esperavas por mim. O envolvimento com a Maria era perigoso. O mais perigoso de todos para ti. Mas não avanço mais. Aconteceu e está (Até amanhã, utopia). Se sei dela? Pergunta cínica.

Foi em setembro que aconteceu um novo tempo de amar que ameaçou esfumar de vez a recordação de outro tempo. Foi em setembro que outro destino me veio buscar. Era o tempo das folhas caídas e, para ti, não podia acontecer. Tudo o resto não passara de sucessivas e efémeras paixões. Mas este novo amor não o querias no meu horizonte.
«Não! Estás enganado.»
E as utopias que lhe escrevi e que ela adorou?
Desculpa se te faço sofrer mais. 
A alma também sangra?
Se não aconteceu, deixa que fiquem estes versos...


PORQUE FOI?


Olhos nos olhos
trigueira bela
julgo que és minha
rosa em botão.

Olhos nos olhos
o tempo passa
quem não me quer
 adivinho
quem eu não quero
gosta de mim.

Nada pedi...
mas tu disseste
quase em sussurro
para eu esperar
que amanhã
no meio da tarde
ias voltar.

Fiquei esperando
olhando a porta 
entreaberta
mas não chegaste.
Cinco da tarde
o tempo a correr
e tu a fugir…

Hoje sem ti
pergunto aos astros
pergunto a mim:
Porque foi?,
cabelos longos
trigueira bela...
Porque foi 
que te perdi?

Se eras tu
e te encantava
se eras tu
não te perdia…

Porque foi?,
cabelos longos
riso engraçado...
porque foi 
que não me amaste?

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