sábado, 20 de maio de 2023

A última rosa





Este não é o meu mundo. Julgava que este mundo tinha sido obra benigna de Deus. Já fui crente nesse tempo. Mas Hoje sou quem sou e não quem era. Alguém desencantado. Não foi Ele, mas o aleatório que levou o jovem da camisola azul ao encontro da rapariga do vestido branco numa noite tépida de setembro. Eu e a minha Eva sonhámos uma vida a dois, até que a serpente me tentou. Uma parente da mesma que expulsou o homem e a mulher do Paraíso. Tudo por causa de uma maçã colhida de uma certa árvore proibida que, por sinal, chamava-se cinicamente "árvore da vida". Que tinha a árvore de especial? As maçãs eram maçãs ou uma metáfora? Claro que eram. Estavam ali para tentar o homem e correr com ele (e a mulher) dali para fora de uma vez por todas. Talvez Deus quisesse fazer uma experiência. E se fez, esta correu mal. O mundo de Deus foi posto a nu. Desde então não houve mais paz neste mundo criado para o homem que, por sua vez, fora criado à Sua imagem. Até que um dia cheguei eu. Estive numa coisa, para mim parecida com o Paraíso e hoje estou como estou! Porra de vida. Tudo por causa de uma árvore e de uma serpente? Treta. Aquilo era uma armadilha e tinha mesmo que acontecer porque no mundo do Senhor Deus, Omnisciente, Omnipotente e Omnipresente, há serpentes espalhadas por tudo o que é sítio. Apesar do que disse e do quase tudo que ficou por dizer, porque ainda acredito encontrar um dia o Paraíso perdido, não consegui evitar este chorinho que se segue... 


Coração orgulhoso e ingrato que escolheste ignorar os desencantados como eu. Coração ingrato e cego. Não me perdoaste, porquê? Sei que estás aí. Presa na escuridão. Talvez chorando baixinho por não ter sido teu quando afinal não quiseste. Não falemos de culpas. Sei bem de quem são. Mas o amor não sabe perdoar? Se fosse amor, dávamos as mãos e seguíamos juntos o nosso caminho. Mas duvido que fosse amor. O amor, quando é puro, sabe perdoar. Mas não faz mal. Amor ou ódio, tanto faz. O elixir é meu, a magia das palavras também. Talvez ainda acredites no amor. Talvez, respondeste. Ou foi imaginação minha. Sai da noite e volta para o azul. Molha os pés na espuma da onda que veio e já não volta. Pisa as pegadas que ficaram para trás e vem ao meu encontro, coração cruel que apagaste os segredos guardados na memória adormecida. Chegou o tempo. Mostra-te. Ganha rosto. Vem ter comigo. Aceita a rosa que nunca te dei e foi colhida no tempo dos amantes, quando a esperança ainda ontem morava em nós, tal como a supernova impludiu ao perder todo o seu hidrogénio. 
Vem. Vem compor a sinfonia para o crepúsculo. Vem, antes que seja tarde e a última viagem já não tenha partida. Estou à tua espera. No silêncio do espinho cravado fundo. Na dor insensível do grito abafado. Vem, coração frio que jazes na terra dos esquecidos e vês o dia e a noite pela fresta que se abriu quando te procurei. 
Havia rosas brancas sobre a tua campa e o vento uivava, irado, porque uma promessa não tinha sido cumprida. Vingança. Tudo à minha volta apontava o dedo da vingança. Mas por mais forte que tivesse sido a razão, se o teu amor fosse eterno, como sonhávamos, terias aberto os braços para me receberes outra vez. Porque foi só um momento de fraqueza. Ou o fruto de uma magia poderosa. 
Porque não te disse que aquele desvio era efémero? Não sei. Fala com Deus. Pergunta-lhe. Só Ele sabe da verdade. Já não acredito em Deus? Tens razão. Ele nunca falou comigo. Por isso e só por isso, perdi a fé. Deixemos então Deus em paz. Tem muito com que se entreter, se é que existe.
A chuva continua a cair em bátegas gélidas na terra hoje ensopada e ontem seca de lágrimas que não foram choradas. Não te vejo, nem oiço a voz que não era suposto vir das profundezas. Mas sinto a tua presença e há uma voz interior que julgo ser a tua. Estás cá dentro e, ao mesmo tempo, longe. Mesmo agora estou a ouvir-te. Pedes para deitar rosas na ilha que te ofereci.
Não queres rosas brancas. Lembram a morte e afirmas que estás viva. Viva em mi. 
Vai à casa onde nasci. Talvez encontres ainda o eco de um amor esquecido...
Quero saber se estas palavras que ouvi são tuas. Não peço muito. Apenas ter a certeza se me chamaste num sonho, ou se a tua voz veio pelas distâncias telepáticas. Se estás presente e continuas escondida. Se estás perto e, ao mesmo tempo, longe. Tão longe e tão perto!
Os videntes dizem que choras, que ouvem o teu soluçar angustiado. Pobre de mim, que sou cego e surdo para o teu mundo, aquele que está ainda para lá da última cortina que nunca consegui abrir.
Fecho os olhos para imaginar como eras. Só vejo um anjo de olhar triste. Tão abandonada estás nesse cárcere que tem as frestas de onde vês os dias e as noites! E sobre a pedra mármore, alva, que te cobre, tens por companhia rosas brancas, já secas. Rosas brancas que eu não ofereci ao meu amor. Para o meu único amor só queria oferecer rosas vermelhas.
Foste a primeira rosa. Levou-te a morte muito cedo. Nunca mais te vi, nem nunca mais te verei. Mas continuo a sonhar. 
Como era o teu olhar triste e a melodia da voz que ouvi há pouco?
Não me lembro.
E onde estão os teus lábios rubros que quis beijar?
Foi há muito. No tempo da primeira rosa.
Quero ver-te, nem que seja uma última vez. Voltar à doçura dos teus lábios. Possuir-te até à exaustão. Acordar a semente adormecida desde o dia do desencantamento.
Já não me lembro do teu rosto, coração frio. Jazes na terra dos esquecidos e eu também vou apodrecendo aos poucos, consumido pela dor que não consigo sentir. És a minha última obsessão. Mau destino o meu que me faz arrefecer na lareira onde, há muito tempo, a última brasa foi consumida.
Como foi possível perder-te tão cedo?
Estou só. Como tu. Se ao menos me desses um sinal...
Não há rasto de azul. Apenas vejo na frente um deserto imenso de solidão e desespero. Dói-me a alma. A carne mirra. Os ossos estão deformados. É um sinal que a morte ensaia o último assalto. Pela primeira vez penso que o meu relógio vai parar. Talvez amanhã. Talvez depois. Não muito depois. E mesmo no parar do relógio, receio que vamos continuar desencontrados. Eu, aqui. Tu do outro lado da porta.
Estou decidido. Levo comigo três rosas para te oferecer. Uma, para recordar o tempo do primeiro amor a despertar. Outra, destinada aos longos dias em que não te tive. E a terceira, a última, quem sabe... para que renasça, aí, desse lado, o amor que um dia jurámos ser eterno!
 

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