segunda-feira, 22 de maio de 2023

Promontório

 


Quem eras, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos nas paredes mudas que falam do tédio e do álcool que ingerias porque não tinhas sede?
Quem eras tu...?
Alguém entrou primeiro. Perdidos, lutámos com pontas aguçadas que não causam dor mas permanecem.
É para ti que falo...
No céu azul as gaivotas voam no cinzento. Bem sabes, sou o promontório dum continente imenso que foste. Não passo duma franja do teu gigantismo.
No teu universo dominaste galáxias, esgrimiste a palavra, amaste o tédio. Mas nunca te conheci. A minha memória sangra de tanto recordar e não te conhecer.

Quem és tu deles?
A luta é feroz, sem tréguas. Vergo. Estremeço. Mas não caio. Só quando chegar a altura...
E o rosto...?
Nesse tempo não suspeitava de ti, nem a Esfinge prometia o enigma da fuga irracional. Foi o tempo dos mistérios. O rosto no lençol. Os olhos encovados. O nariz grosso. O primeiro sinal de um rosto gravado num lençol (1).
Nunca assumiste. A luta continuou e os teus guerreiros multiplicaram os sinais. A neblina ainda cobriu mais o meu sonho azul.
Pobre de mim que me tocaste. Não passo de um grão infinitamente pequeno do teu gigantismo. Não sei quem és e quem trouxeste. Nos palpites da roleta que nunca mostra o número... vejo-te nas mil facetas que foste e já não és. Trouxeste-os. Todos. Eles que te destruíram. E os meus neurónios sangram e apagam luzes, aos poucos. Já não sou. Já não estás cá dentro.

Mas quem eras...?
Conheço-te no voo da gaivota que perdeu o rumo. No sonho do prisma que o corpo de luz inundou. Conheço-te na mulher de vermelho que me dominou, ou na Esfinge que parece sorrir e devora cá dentro. Conheço-te na magia dos oitos. Também na utopia do Império. Na solidão. No tédio. No oculto...

Quem eras, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos a ver o mundo que não tiveste?

Vê a última verdade pelo promontório que sou. E. mesmo que seja utopia, lança enfim ao mar todas as personagens que te ocultaram e nunca deixaram vir à superfície todo o outro mundo ou grandiosidade que não assumiste!


1)  O mais curioso é que Mário já contou uma história passada com ele em Julho de 1987 (um ano antes). Aí falava de um rosto gravado no lençol.

"Num destes dias apareceu uma coisa estranha gravada no lençol da cama, do lado esquerdo. Parece um rosto de mulher índia. Notam-se os contornos da cara, dos olhos e do nariz, este de contornos grosseiros. Há também um esboço de trança ou uma espécie de uma trança. Já dei voltas e mais voltas à cabeça e não consegui encontrar qualquer explicação para aquela estranha ocorrência.
Resolvi não apagar a gravação no lençol, pelo menos nos próximos dias. Neste momento são sete horas da manhã. Vou tomar um duche, vestir-me e passar pela escola. Depois sigo direto para S. José. Todos os dados bateram certo. A morte marcou encontro com um amigo..."

"Quanto ao rosto gravado no lençol, ainda não encontrei solução. Naquela sexta-feira fui ao hospital de S. José e depois passei por casa com o Sérgio e a Hermínia. A cama ainda estava por fazer. Mostrei-lhes o lençol e pedi para analisarem bem. Ele disse que não via nada de especial e ela exclamou logo:
«Isto parece um rosto!»
Era o que queria ouvir. Não estava com alucinações.
Mas de quem é o rosto...?"

sábado, 20 de maio de 2023

A última rosa





Este não é o meu mundo. Julgava que este mundo tinha sido obra benigna de Deus. Já fui crente nesse tempo. Mas Hoje sou quem sou e não quem era. Alguém desencantado. Não foi Ele, mas o aleatório que levou o jovem da camisola azul ao encontro da rapariga do vestido branco numa noite tépida de setembro. Eu e a minha Eva sonhámos uma vida a dois, até que a serpente me tentou. Uma parente da mesma que expulsou o homem e a mulher do Paraíso. Tudo por causa de uma maçã colhida de uma certa árvore proibida que, por sinal, chamava-se cinicamente "árvore da vida". Que tinha a árvore de especial? As maçãs eram maçãs ou uma metáfora? Claro que eram. Estavam ali para tentar o homem e correr com ele (e a mulher) dali para fora de uma vez por todas. Talvez Deus quisesse fazer uma experiência. E se fez, esta correu mal. O mundo de Deus foi posto a nu. Desde então não houve mais paz neste mundo criado para o homem que, por sua vez, fora criado à Sua imagem. Até que um dia cheguei eu. Estive numa coisa, para mim parecida com o Paraíso e hoje estou como estou! Porra de vida. Tudo por causa de uma árvore e de uma serpente? Treta. Aquilo era uma armadilha e tinha mesmo que acontecer porque no mundo do Senhor Deus, Omnisciente, Omnipotente e Omnipresente, há serpentes espalhadas por tudo o que é sítio. Apesar do que disse e do quase tudo que ficou por dizer, porque ainda acredito encontrar um dia o Paraíso perdido, não consegui evitar este chorinho que se segue... 


Coração orgulhoso e ingrato que escolheste ignorar os desencantados como eu. Coração ingrato e cego. Não me perdoaste, porquê? Sei que estás aí. Presa na escuridão. Talvez chorando baixinho por não ter sido teu quando afinal não quiseste. Não falemos de culpas. Sei bem de quem são. Mas o amor não sabe perdoar? Se fosse amor, dávamos as mãos e seguíamos juntos o nosso caminho. Mas duvido que fosse amor. O amor, quando é puro, sabe perdoar. Mas não faz mal. Amor ou ódio, tanto faz. O elixir é meu, a magia das palavras também. Talvez ainda acredites no amor. Talvez, respondeste. Ou foi imaginação minha. Sai da noite e volta para o azul. Molha os pés na espuma da onda que veio e já não volta. Pisa as pegadas que ficaram para trás e vem ao meu encontro, coração cruel que apagaste os segredos guardados na memória adormecida. Chegou o tempo. Mostra-te. Ganha rosto. Vem ter comigo. Aceita a rosa que nunca te dei e foi colhida no tempo dos amantes, quando a esperança ainda ontem morava em nós, tal como a supernova impludiu ao perder todo o seu hidrogénio. 
Vem. Vem compor a sinfonia para o crepúsculo. Vem, antes que seja tarde e a última viagem já não tenha partida. Estou à tua espera. No silêncio do espinho cravado fundo. Na dor insensível do grito abafado. Vem, coração frio que jazes na terra dos esquecidos e vês o dia e a noite pela fresta que se abriu quando te procurei. 
Havia rosas brancas sobre a tua campa e o vento uivava, irado, porque uma promessa não tinha sido cumprida. Vingança. Tudo à minha volta apontava o dedo da vingança. Mas por mais forte que tivesse sido a razão, se o teu amor fosse eterno, como sonhávamos, terias aberto os braços para me receberes outra vez. Porque foi só um momento de fraqueza. Ou o fruto de uma magia poderosa. 
Porque não te disse que aquele desvio era efémero? Não sei. Fala com Deus. Pergunta-lhe. Só Ele sabe da verdade. Já não acredito em Deus? Tens razão. Ele nunca falou comigo. Por isso e só por isso, perdi a fé. Deixemos então Deus em paz. Tem muito com que se entreter, se é que existe.
A chuva continua a cair em bátegas gélidas na terra hoje ensopada e ontem seca de lágrimas que não foram choradas. Não te vejo, nem oiço a voz que não era suposto vir das profundezas. Mas sinto a tua presença e há uma voz interior que julgo ser a tua. Estás cá dentro e, ao mesmo tempo, longe. Mesmo agora estou a ouvir-te. Pedes para deitar rosas na ilha que te ofereci.
Não queres rosas brancas. Lembram a morte e afirmas que estás viva. Viva em mi. 
Vai à casa onde nasci. Talvez encontres ainda o eco de um amor esquecido...
Quero saber se estas palavras que ouvi são tuas. Não peço muito. Apenas ter a certeza se me chamaste num sonho, ou se a tua voz veio pelas distâncias telepáticas. Se estás presente e continuas escondida. Se estás perto e, ao mesmo tempo, longe. Tão longe e tão perto!
Os videntes dizem que choras, que ouvem o teu soluçar angustiado. Pobre de mim, que sou cego e surdo para o teu mundo, aquele que está ainda para lá da última cortina que nunca consegui abrir.
Fecho os olhos para imaginar como eras. Só vejo um anjo de olhar triste. Tão abandonada estás nesse cárcere que tem as frestas de onde vês os dias e as noites! E sobre a pedra mármore, alva, que te cobre, tens por companhia rosas brancas, já secas. Rosas brancas que eu não ofereci ao meu amor. Para o meu único amor só queria oferecer rosas vermelhas.
Foste a primeira rosa. Levou-te a morte muito cedo. Nunca mais te vi, nem nunca mais te verei. Mas continuo a sonhar. 
Como era o teu olhar triste e a melodia da voz que ouvi há pouco?
Não me lembro.
E onde estão os teus lábios rubros que quis beijar?
Foi há muito. No tempo da primeira rosa.
Quero ver-te, nem que seja uma última vez. Voltar à doçura dos teus lábios. Possuir-te até à exaustão. Acordar a semente adormecida desde o dia do desencantamento.
Já não me lembro do teu rosto, coração frio. Jazes na terra dos esquecidos e eu também vou apodrecendo aos poucos, consumido pela dor que não consigo sentir. És a minha última obsessão. Mau destino o meu que me faz arrefecer na lareira onde, há muito tempo, a última brasa foi consumida.
Como foi possível perder-te tão cedo?
Estou só. Como tu. Se ao menos me desses um sinal...
Não há rasto de azul. Apenas vejo na frente um deserto imenso de solidão e desespero. Dói-me a alma. A carne mirra. Os ossos estão deformados. É um sinal que a morte ensaia o último assalto. Pela primeira vez penso que o meu relógio vai parar. Talvez amanhã. Talvez depois. Não muito depois. E mesmo no parar do relógio, receio que vamos continuar desencontrados. Eu, aqui. Tu do outro lado da porta.
Estou decidido. Levo comigo três rosas para te oferecer. Uma, para recordar o tempo do primeiro amor a despertar. Outra, destinada aos longos dias em que não te tive. E a terceira, a última, quem sabe... para que renasça, aí, desse lado, o amor que um dia jurámos ser eterno!
 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

A visita tímida

 

 
                  Entraste sem dizer quem eras
                  paixão  carência  alma fria;
                  miragem que os olhos viram
                  palavras que não existiram
                  soaram na noite vazia.
 
                  Entraste sem me avisar
                  senti-te no escuro a arder
                  calor que abalou a razão;
                  entraste sem eu saber
                  que torres construímos
                  ou sementes lançámos
                  no mundo onde crescemos.
 
                  Foste a imagem que ficou
                  quando tímida entraste; 
                  talvez álcool  sopro quente
                  viagem longa e dormente 
                 sem eu nunca te alcançar.

                  Dormimos juntos na cama
                  sem saber quem eras tu
                  mas tu sabias de mim.
                  Teus seios eram vulcões
                  desejos adormecidos
                  que despertavam em mim.

                  Tinhas cabelos negros
                  trigueira era a tua cor
                  ardentes uns olhos castanhos
                  carentes, famintos de amor.

                  A noite partiu em viagem
                  foi o tempo de ondular
                  juntos fomos na voragem
                  nunca vi o teu olhar.

                  Quase a aurora a chegar
                  e eu quieto no escuro;
                  eras um fruto maduro
                  que eu queria pegar.
 
                  E quando te perguntei
                  se eras um amor que perdi
                  ou outra que inventei
                  no passado que já vivi...
                  O teu sorriso distante
                  disfarçou um breve rubor
                  negando no mesmo instante
                  que nem sequer era amor!

                  E quando te perguntei
                  quem eras ou se eras tu
                  fugiste e fiquei a pensar
                  pois não queria acreditar
                  que te comi, fruto doce.
 
                  Era tarde para adivinhar
                  se foste sonho e sonhei
                  amando até madrugar
                  sem saber a quem amei...

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Pobre sereia abandonada


Vi-a sentada num rochedo
desnuda  olhando o mar
triste  abandonada  esquecida.
Olhei-a 
e perguntei-lhe o que fazia
sentada naquele rochedo.
Maliciosa...

fingindo tristeza
queixou-se  sussurrando:

“Estou presa
acorrentada
abandonada.”
“Então que fizeste de mal?”
“Nada...”
“Nada?”
“Bem... eles dizem 
que traí o amor."
"E eles quem são?"
"Eles. Não importa.
Traí o meu mar."
 "O teu mar?"
"O mar que era tudo para mim."

"E que também tira tudo."
"Este não!," acredita.
"Ah... Era especial para ti."

Olhou-me com certa malícia
e chamou-me com o olhar...

“Estou presa e fascinada
pelo verde-azul do meu mar
o verde- azul do teu olhar.”
“Do meu olhar?
Mas eu não sou o teu mar!”
“Fui abandonada por ti.
Sou uma pobre sereia sem rumo.”
“Mas não sou o teu mar!

nem quero olhar os teus olhos.

Afasto-me e fico a pensar.
“Que estranha atração

ficou daquele olhar!”

De repente...
alguém a meu lado
fala comigo
abraça-me
sorri com doçura.
Impossível!
Eu e ela
muito juntos

abraçados
carentes
sonhadores
olhamos o mar
que nos fascina.

Mergulho outra vez 
no mar do seu olhar
nas colinas dos seus seios
deixo as mãos  movo as mãos
mas na onda que se espraia
vejo a espuma que se desfaz...

A onda a varrer a praia
e eu de novo a pensar.
“Que música é esta?
que desejo estranho é este?

Não!, não!, e não! 
Não quero mais acreditar!" 
Na magia do teu olhar.

O rochedo continua por lá 
mas não a vejo, a sereia.
“É tudo um sonho!,” acredito.
Vou afastar-me para bem longe...


Agora tem que ser de vez
não vá esta sereia voltar
levar-me no seu canto fatal
na sua nudez sedutora
 
nos suaves cânticos eróticos

É melhor eu fugir de vez
ser pássaro para voar veloz
longe das areias douradas 
desta praia encantada;
rumar para lá do céu azul 

bem longe do seu olhar
até outra sereia chegar.


 

sábado, 13 de maio de 2023

Relógio parado

  



Relógio
angústia  torpor
sonho  amarras 
voo  galáxia
regresso  
torpor  angústia
prisão  horizonte
relógio  atraso
sonho suspenso.

Foi ontem...
Levou-te a viagem
não posso amar-te.
Foste paixão
loucura  voragem
amei-te pela noite
a manhã levou-te.

Se o amor existiu
a paixão o matou.
Se a paixão existiu
o amor não te quis.

Cheirava a maresia
o teu corpo sedoso
e o sabor dos lábios
a morangos silvestres.

Foi há tanto tempo!,
que quase me esqueci
do mar dos teus olhos.
Levou-te a viagem
não mais te verei.

Relógio
distância  torpor
gaivota  viagem
futuro  utopia
torpor  distância
viagem  no fim.

Perdi os teus olhos
parou o relógio
não posso voltar...

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Laboratório secreto

 


N
o meu laboratório secreto, 
de provetas invisíveis e sais inodoros, crio as noites de maré cheia 
com rostos de maré vazia. Pedaços de sonhos, esmagados no almofariz do subconsciente e diluídos na crueza do real, experimentam fumos multicolores que desaparecem na clepsidra do acontecer.
No meu laboratório secreto há explosões incontroladas que devoram cá dentro o desejo de eternidade. Agitam-se os tubos de ensaio e trocam-se misturas incompatíveis nos cadinhos que vão ao fogo purificar a verdade que não é a última verdade.
No meu laboratório secreto procuro a órbita do teu afastamento e a fenolftaleína não dá sinal que existes, noutro tempo e noutro espaço.
No meu laboratório secreto faço a purificação no vazio da noite. Os ácidos esmagam docemente as bases em espuma que violenta as areias da praia e que logo se desvanece.
Vejo nos teus olhos de Esfinge poções satânicas que vigiam as profundezas onde os neurónios governam e esperam pacientemente pelo momento certo para quebrar as últimas resistências.
No meu laboratório profanado os ácidos diluíram os sonhos de ontem e criaram monstros materialistas que vão devorar com avidez no amanhã.
Mas, no fundo do amanhã, o hidrogénio irá encher balões de esperança rumo à eternidade, até que um dia chegarei aos anos-luz dos sonhos diluídos onde nascem outras estrelas onde tu não estás!
 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O leão é assim...

 



Três da tarde
sonhos vividos
paixão ardente
alma sofrida
desencantado
sem amor
sem Deus

sou nada
mas sou eu.


Três da tarde
tempo parado
espero por ti
paixão de ontem
que se repete
e é diferente
que se renova
e é igual.


Sorrisos
olhares
magia
carícias
mãos enlaçadas
beijos ardentes
emoções
desejos proibidos
sentimentos
perguntas
silêncio
só silêncio 
no tempo parado
perdido
inútil
que seguiu.


A nossa paixão...
beijos sôfregos
línguas coladas
beijos molhados
pontes erguidas
pontes caídas
medo e frio
angústia
 desencanto
ausência
solidão 
vazio.


Vida agarrada
já não sofrida
ternura
carícia
beijos roubados
vidas sem grades
amor intenso
paixão presente.


Três da tarde
o leão é rei
 a leoa é rainha
o resto só desejo
desejo  desejo
mas...
a nuvem a passar
o vento a trouxe
o vento a levou...


Como foi?
Foi bom?
Não sei.
O leão não disse
e a leoa calou;
e amanhã será...
enfim o fim
do desencanto
enfim o fim
sem saudade.

Vem o crepúsculo
a solidão
o amor sofrido
perdido
esquecido;
torpor
agonia
vazio
frio
rosas
viagem
foi o fim.


Três da tarde.
Procuro 
desesperado
ainda estás
mas já não estás.
Queria o amor
sentir os teus seios
o teu corpo
a tua cama
o teu cheiro.


Não te vejo
não estás
nem eu estou
nem estivemos.


A paixão é efémera
e apenas acontece.  
No amor não;
se acaso fosse amor
o leão voltava costas
e amanhã esquecia-te?
Não!


Três da tarde
é outro dia;
fui noutro rasto
vivi o amor
vivi a paixão
voltei as costas 
o leão é assim...

terça-feira, 9 de maio de 2023

Porque foi?

 


Porque foi?, cabelos longos, trigueira bela, sorriso engraçado?
Era setembro. Foi o tempo de amar. Tinhas razão. Também foi ontem. Há muito tempo, quando as folhas das árvores caíram, amarelecidas. O seu tempo chegara ao fim. O teu rosto tristonho, bem como esse olhar, que nunca esquecerei, perdido para lá do horizonte denunciava a certeza do fim de um ciclo. Do nosso ciclo. De uma relação a dois sem força para continuar. Pensei eu.
Foi em setembro. Fui o teu destino, mas perdi-te porque, tal acontece com as folhas das árvores que desistem de viver, também partiste (Manuela). Cedo. Demasiado cedo para quem tinha a força de viver e viu-se perdida. Para ti, essa força natural já nada valia. Pensaste bem ou mal. Foi o que pensaste. Pensaste e eu segui por novos caminhos e tive várias paixões inconsequentes. Tudo eram desencantos para um desencantado que procurava, alucinado, a tua imagem que revia minuto a minuto. Afinal estavas do lado errado da vida. Para lá da porta. Num outro mundo onde não podia chegar, apesar das mil e uma cortinas que ia descerrando. Por mais que me enviasses sinais havia sempre novas cortinas na minha frente. E cada vez mais opacas. Não me restava outra hipótese senão desistir.
Bem sei que partiste de asas feridas. Culpa minha? Mas partiste sem um adeus. Sem avisar. E foi acontecer ironicamente no tempo dos cravos. Do alvor da liberdade. E tu presa num mundo de onde não podias mais voltar.
Uns anos mais tarde, quando a paixão já estava a adormecida começaste a enviar-me sinais, parecendo dizer estou aqui, à tua espera.  Foram momentos de angústia. Imaginava a tua solidão. A tal solidão que acompanha todos os que partem. Eu sei. Morreste só. Como todos aqueles que morrem. Mas escolheste a pior forma de morrer. Desististe. 
Será que te arrependeste à hora da partida? 
Não sei. O certo é que senti o teu desespero nesse dia fatal...
 
Uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais. Ouvi logo uma voz arrastada de um ancião que parecia vir de muito longe. Era o padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção de uma pessoa falecida. Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz vinha ainda de mais longe.  O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê.
«Não me leves ainda!»
 Mas não era eu!
Que queria dizer? 
Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Mas não conseguia suster as lágrimas.
Deixei que continuassem a correr. O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída.

Segui a minha vida. Mal ou bem. Sempre de beiral em beiral...
Até conheci a Maria e joguei todas as cartas do baralho para que desse certo. Por coincidência, ela também apareceu em setembro na minha vida. Talvez por isso, para que não acontecesse o que seria fatal para ti, dei com outro obstáculo. A Maria era muito mais nova e eu deixei que soltasse os cabelos ao vento. Sabes o que quer dizer? E porque acabou? Não. Não foi o punhal dourado que ela me ofereceu e que interpretei como um sinal de traição que me conduziu à Odete. Isso desconfiei na altura. Hoje penso que que foste tu. Estavas desse lado e esperavas por mim. O envolvimento com a Maria era perigoso. O mais perigoso de todos para ti. Mas não avanço mais. Aconteceu e está (Até amanhã, utopia). Se sei dela? Pergunta cínica.

Foi em setembro que aconteceu um novo tempo de amar que ameaçou esfumar de vez a recordação de outro tempo. Foi em setembro que outro destino me veio buscar. Era o tempo das folhas caídas e, para ti, não podia acontecer. Tudo o resto não passara de sucessivas e efémeras paixões. Mas este novo amor não o querias no meu horizonte.
«Não! Estás enganado.»
E as utopias que lhe escrevi e que ela adorou?
Desculpa se te faço sofrer mais. 
A alma também sangra?
Se não aconteceu, deixa que fiquem estes versos...


PORQUE FOI?


Olhos nos olhos
trigueira bela
julgo que és minha
rosa em botão.

Olhos nos olhos
o tempo passa
quem não me quer
 adivinho
quem eu não quero
gosta de mim.

Nada pedi...
mas tu disseste
quase em sussurro
para eu esperar
que amanhã
no meio da tarde
ias voltar.

Fiquei esperando
olhando a porta 
entreaberta
mas não chegaste.
Cinco da tarde
o tempo a correr
e tu a fugir…

Hoje sem ti
pergunto aos astros
pergunto a mim:
Porque foi?,
cabelos longos
trigueira bela...
Porque foi 
que te perdi?

Se eras tu
e te encantava
se eras tu
não te perdia…

Porque foi?,
cabelos longos
riso engraçado...
porque foi 
que não me amaste?