Valerá a pena equacionar um problema sem solução?
Separa-nos uma muralha de betão e estamos tão perto!, à distância de beijar os seus olhos de gazela assustada, mas que não foge, que parece observar o jogo, expectante, no entanto sem responder a uma única jogada.
Eu crepúsculo e tu rosa em botão. Não temos idade para amar. É proibido amar neste mundo cruel que atira os amantes contra os preconceitos da sociedade, que lhes oferece como certo o desencantamento perante obstáculos intransponíveis. Um mundo em que só a morte é certa e essa não escolhe idades.
Quanto à vida, não tem sentido quando não pode ser nosso o objeto desejado.
E, se não tem sentido, porquê continuar a viver com o silêncio das palavras e com diálogos absurdos entre olhos?
Estou perante a equação de um problema insolúvel, talvez porque não consegui montar o cavalo da coragem...
Então?, se estamos assim tão certos da mesma verdade, que nos impede de seguir juntos em frente, sem olhar noutra direção que não seja a nossa?
Ou não estamos...?
Que me impede de beijar as tuas mãos delicadas, os teus belos olhos de gazela assustada que ainda ontem procurava a proteção em mim, o teu porto de abrigo.
Sinto o sol. Aquece-me. Mas vai cair mais. Lá ao fundo. Onde o mar já não se avista. Vai chegar o crepúsculo. O vermelho frio e distante que precede a negritude. Vai chegar o crepúsculo e eu vou fechar enfim os olhos. Sonhar. Sem adormecer.
Onde estou? Será que adormeci mesmo? Ah!, estou bem acordado. E que vejo? Uma mesa comprida. Muitas cadeiras em frente. Vai começar um debate. Não. Não vejo assistência. As cadeiras estão vazias e desarrumadas. Talvez que o debate já tenha acabado. Talvez eu esteja à espera das pessoas que nunca chegarão. O melhor é sentar-me. Assim. Virado para as cadeiras. Tenho que me habituar a enfrentar as multidões. A Madalena disse um dia que estava a ver em mim um Pastor. Não é verdade. Nunca conseguirei. A minha luz apaga-se quando vejo multidões na frente.
Que vou dizer, se estiverem à espera da minha palavra?, que hoje sou um lago de bonança onde todos os barcos podem navegar sem perigo, e amanhã um mar alteroso que leva os mesmos barcos para o fundo?
A Madalena enganou-se. Mais que uma vez, aliás.
«Temos que nos amparar um ao outro...»
O tempo sem tempo já passou. Talvez que até nunca tenha existido. Sou exímio em criar situações irreais. Talvez seja o resultado da minha imaginação doentia. Talvez. Por exemplo, entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu. Olho em volta e só estamos nós. Não há dúvida. Deve conhecer-me. Então, devo sorrir. Talvez seja melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não. Não vá haver outra pessoa na sala.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Cabelos castanhos, compridos. Fico sentado. Parece que já estava à espera dela. Curioso.
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
«Extraviou-se...»
«Era para outra!»
Mensagens. Recados de um diálogo que foi tragado pelas engrenagens impiedosas do tempo. Quero dizer qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento e partiu para longe. Quem sabe se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço!
Agora reparo. É atraente. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. A palma da mão está virada para cima. Interrogo-a com o olhar.
Precisa de mim?
De certa maneira. Quer que pegue na sua mão.
E que vou fazer com aquela mão macia?
Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido. Agora que chegou o crepúsculo. Agora com o sol a cair no horizonte, escondido, é demasiado tarde. Não sou eterno.
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e os olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me outros tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Agora, ela estendia-me a mão e estava à espera. Sorrindo. Um pouco embaraçada. Era tímida.
A timidez desculpa muitas faltas; mas... as pessoas tímidas serão também ingratas?
«Que jovem tão sedutora!» pensei.
Talvez que tivesse entrado na sala errada...
Acabava de pegar-lhe na mão e ela estava à espera.
Mas que ia fazer?, acariciar a mão da jovem?
Comecei a olhar fixamente para a mão, como quem planeia uma viagem. Continuávamos sós naquela sala mágica que tinha uma porta fechada e por onde não ia entrar mais ninguém.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parecia ser secreto. Quem sabe... também o amor!
Ou era paixão?
Tentava adivinhar. Tentava adivinhar na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Nos olhos espantados e muito abertos. Na mulher que se oferecia, corpo e alma. Tentava adivinhar se ia perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana.
Na verdade nesse dia perdi uma coisa importante, a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os nossos olhares guardaram. Não usei a porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como apelo de uma mulher carente. Senti que era uma mulher rendida ao amor. Nesse momento foi o que senti. Eu próprio andava perdido em meandros de paixão e receio. Tudo podia ter acontecido. Era só um gesto. Um aperto mais forte e o mundo seria meu. Mas não sei o que aconteceu. Preferi assumir o controlo. Venceu o receio. O abismo das idades. Inconscientemente foi isso. Nesse dia fui eu quem fugiu para lá da coragem. Continuei na busca de adjetivos que nada tinham a ver com a sua voz ofegante, com o momento mágico que estava a acontecer. Fingi descobrir o passado e o futuro, quando tinha o presente bem a meu lado.
Agora é tarde. O sol encobriu-se. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o sol. Parece um botão de rosa. Não. As rosas não são cinzentas...
Sentido da responsabilidade, secretismo, timidez.
A nuvem ofuscou o sol no momento fatal em que, todo eu futurólogo, peguei na mão dela e, aos poucos, o nosso destino se foi distanciando. Fatalmente distanciando.
Sonhei que corrias ao meu encontro...
A tua vida continuava sendo uma corrida. Apareceste de repente, tal como aconteceu na realidade, e trazias uns pontos para eu acabar de ver. Portanto, estávamos em trabalho de equipa. Havia umas perguntas para classificar. Sentaste-te à minha direita. Deste-me as folhas. Peguei numa e fiquei a ler as perguntas. Uma delas era qualquer coisa ligada à Química. As respostas tinham fórmulas químicas e eu não estava dentro do assunto. Então, ajudaste-me, mas disseste:
«Vá!, despacha-te!»
Achei piada. A tua voz de gaiata (já a ouvira noutros tempos?) a dar-me ordens. E eu, um Leão muito indeciso. Tudo ao virado do avesso.
O tempo passava e não entendia nada. Cada vez tinhas mais pressa. E eu todo o tempo do mundo, na minha ignorância. Mas começavas a ficar ansiosa. O tempo corria. E eu cada vez mais bloqueado. Não conseguia. Desconhecia as resposta. Voltaste a ajudar e pus uns “certos” em duas ou três questões. Mas não ia conseguia acabar. Não ia conseguir. Olhei para ti e não me lembro de mais porque acordei.
Este sonho joga com o futuro. É o tal problema que não posso resolver sozinho.
Não sei o que pensas. Não sei o que dizem os teus olhos de gazela espantada aos meus que olham os teus com firmeza. É um diálogo entre eles. Só entre eles. Como se o coração estivesse dentro nos nossos olhos e a parte restante dos corpos pertencesse a outros seres, frios, que se interrogavam e chegavam a conclusões drásticas. Esse era o problema. Se o coração mandasse e se a poesia cantada pelos olhos pudesse ditar as leis certas talvez que tudo viesse a acontecer de forma diferente. Mas não havia linguagem pura em cabeças que pensavam friamente. Nem palavras de despedida. A esperança era coisa proibida. O sonho abortara sem ter nascido naquelas cabeças que comandavam o coração.
Tínhamos relógios que marcavam horas diferentes. Era impossível acontecer poesia quando uma barreira de idades não deixava passar os versos.
Apesar de tudo, bruscamente:
«E a minha poesia? E a tua expressão de agrado?»
«Quando a li senti que era a tua heroína. Só isso...»
Desolação.
«Eu queria mais poemas!»
Esperança.
«E eu queria fugir contigo para lá das estrelas mais distantes onde ninguém pudesse apontar-nos um dedo.»
«E que interessava se nos apontassem um dedo?»
Utopia.
«Queria que me levasses para um sítio onde ninguém pudesse rir-se de nós...»
Secretismo.
«Só agora dou conta dessa tua faceta.»
«Talvez porque não sou eu! Mas, por outro lado, não há nenhuma estrela que nos possa abrigar.»
«Porquê?»
«Também lá os nossos relógios não vão marcar o mesmo tempo.»
«Vá lá... Podemos procurar.»
De novo a esperança.
«Mas há milhões e milhões de estrelas...»
«Podemos fingir que encontramos a estrela. Podemos fingir sem sair de cá. Montamos o cavalo alado da coragem. Os dois. Ou então fugimos para longe na magia...»
«Que magia, Mário?»
«Nem que seja a magia do sonho, Maria.»
Desencanto.
«Então nunca te terei!»
«Não há só música na outra face da cassete. A utopia fez-se realidade. Tens os poemas. Ouve e responde.»
«Não sei fazer poemas.»
Fuga.
«Mas os teus olhos são o mais belo poema que já ouvi!»
«Os meus olhos não falam. Os teus, sim. E devoram.»
«Tens razão. É o que diz a Odete. Sou um buraco negro. Não te aproximes. Foge enquanto é tempo... mas sonha todos os dias comigo!»
Ambiguidade.
«Se o coração mandasse nos meus olhos...»
«Quem é o tirano?»
Outro. Quem quer que seja, tanto faz.
«O relógio.»
Ah sim. O relógio.
«Um relógio só marca as horas.»
Mas...
«Não tenho idade...»
«Tu tens. Eu sou um rio que corre já perto da foz. O teu desce, impetuoso, por entre montanhas. Se pudesse esperar por ti...»
«Infelizmente estou longe.»
«Vejo-te sempre a correr, cabelos soltos ao vento...»
A esperança. O sonho. Tudo está perdido.
«Quanto mais corro, mais me afasto.»
Oh!, manhã cinzenta!
«De qualquer forma, espero por ti.»
«Onde?»
«Em todos os sítios. Vou tentar ser o teu destino.»
Fatalismo.
«E eu vou ter contigo.»
Determinismo.
«Então, está bem.»
«A que horas nos encontramos?»
Expetativa.
«Podes vir quando quiseres. Corre. Vive livremente as águas do teu rio veloz. Vive até à exaustão. Eu fico aqui, à tua espera.»
«Como descobrir-te?»
Dúvida.
«...»
«E se eu te disser que nem sequer gostei dos teus poemas?»
«Paciência. Faço outros.»
«Para outra?»
Alívio em perspetiva.
«Gostas de mim?»
«Não sei.»
«E os teus olhos...?»
«Os olhos não falam comigo.»
«Tens receio de te entregares. Mas um dia vais mudar.»
«Em quê?»
Ansiedade.
«Talvez sejas o próximo rio.»
«Que rio?»
«Os rios são todos iguais. Trazem água...»
«Sim?»
«Diz só para mim aquele poema que fala de pôr do sol. É belo!»
«Esse não o escrevi!»
Riso escarninhos
«Pois não.»
«Então...?»
«Então o quê? Já adivinhei. Será a utopia (1)?»
«Todos menos esse. Traíste-me...»
Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete.
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.
«Que jovem tão sedutora!» pensei.
Talvez que tivesse entrado na sala errada...
Acabava de pegar-lhe na mão e ela estava à espera.
Mas que ia fazer?, acariciar a mão da jovem?
Comecei a olhar fixamente para a mão, como quem planeia uma viagem. Continuávamos sós naquela sala mágica que tinha uma porta fechada e por onde não ia entrar mais ninguém.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parecia ser secreto. Quem sabe... também o amor!
Ou era paixão?
Tentava adivinhar. Tentava adivinhar na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Nos olhos espantados e muito abertos. Na mulher que se oferecia, corpo e alma. Tentava adivinhar se ia perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana.
Na verdade nesse dia perdi uma coisa importante, a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os nossos olhares guardaram. Não usei a porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como apelo de uma mulher carente. Senti que era uma mulher rendida ao amor. Nesse momento foi o que senti. Eu próprio andava perdido em meandros de paixão e receio. Tudo podia ter acontecido. Era só um gesto. Um aperto mais forte e o mundo seria meu. Mas não sei o que aconteceu. Preferi assumir o controlo. Venceu o receio. O abismo das idades. Inconscientemente foi isso. Nesse dia fui eu quem fugiu para lá da coragem. Continuei na busca de adjetivos que nada tinham a ver com a sua voz ofegante, com o momento mágico que estava a acontecer. Fingi descobrir o passado e o futuro, quando tinha o presente bem a meu lado.
Agora é tarde. O sol encobriu-se. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o sol. Parece um botão de rosa. Não. As rosas não são cinzentas...
Sentido da responsabilidade, secretismo, timidez.
A nuvem ofuscou o sol no momento fatal em que, todo eu futurólogo, peguei na mão dela e, aos poucos, o nosso destino se foi distanciando. Fatalmente distanciando.
Sonhei que corrias ao meu encontro...
A tua vida continuava sendo uma corrida. Apareceste de repente, tal como aconteceu na realidade, e trazias uns pontos para eu acabar de ver. Portanto, estávamos em trabalho de equipa. Havia umas perguntas para classificar. Sentaste-te à minha direita. Deste-me as folhas. Peguei numa e fiquei a ler as perguntas. Uma delas era qualquer coisa ligada à Química. As respostas tinham fórmulas químicas e eu não estava dentro do assunto. Então, ajudaste-me, mas disseste:
«Vá!, despacha-te!»
Achei piada. A tua voz de gaiata (já a ouvira noutros tempos?) a dar-me ordens. E eu, um Leão muito indeciso. Tudo ao virado do avesso.
O tempo passava e não entendia nada. Cada vez tinhas mais pressa. E eu todo o tempo do mundo, na minha ignorância. Mas começavas a ficar ansiosa. O tempo corria. E eu cada vez mais bloqueado. Não conseguia. Desconhecia as resposta. Voltaste a ajudar e pus uns “certos” em duas ou três questões. Mas não ia conseguia acabar. Não ia conseguir. Olhei para ti e não me lembro de mais porque acordei.
Este sonho joga com o futuro. É o tal problema que não posso resolver sozinho.
Não sei o que pensas. Não sei o que dizem os teus olhos de gazela espantada aos meus que olham os teus com firmeza. É um diálogo entre eles. Só entre eles. Como se o coração estivesse dentro nos nossos olhos e a parte restante dos corpos pertencesse a outros seres, frios, que se interrogavam e chegavam a conclusões drásticas. Esse era o problema. Se o coração mandasse e se a poesia cantada pelos olhos pudesse ditar as leis certas talvez que tudo viesse a acontecer de forma diferente. Mas não havia linguagem pura em cabeças que pensavam friamente. Nem palavras de despedida. A esperança era coisa proibida. O sonho abortara sem ter nascido naquelas cabeças que comandavam o coração.
Tínhamos relógios que marcavam horas diferentes. Era impossível acontecer poesia quando uma barreira de idades não deixava passar os versos.
Apesar de tudo, bruscamente:
«E a minha poesia? E a tua expressão de agrado?»
«Quando a li senti que era a tua heroína. Só isso...»
Desolação.
«Eu queria mais poemas!»
Esperança.
«E eu queria fugir contigo para lá das estrelas mais distantes onde ninguém pudesse apontar-nos um dedo.»
«E que interessava se nos apontassem um dedo?»
Utopia.
«Queria que me levasses para um sítio onde ninguém pudesse rir-se de nós...»
Secretismo.
«Só agora dou conta dessa tua faceta.»
«Talvez porque não sou eu! Mas, por outro lado, não há nenhuma estrela que nos possa abrigar.»
«Porquê?»
«Também lá os nossos relógios não vão marcar o mesmo tempo.»
«Vá lá... Podemos procurar.»
De novo a esperança.
«Mas há milhões e milhões de estrelas...»
«Podemos fingir que encontramos a estrela. Podemos fingir sem sair de cá. Montamos o cavalo alado da coragem. Os dois. Ou então fugimos para longe na magia...»
«Que magia, Mário?»
«Nem que seja a magia do sonho, Maria.»
Desencanto.
«Então nunca te terei!»
«Não há só música na outra face da cassete. A utopia fez-se realidade. Tens os poemas. Ouve e responde.»
«Não sei fazer poemas.»
Fuga.
«Mas os teus olhos são o mais belo poema que já ouvi!»
«Os meus olhos não falam. Os teus, sim. E devoram.»
«Tens razão. É o que diz a Odete. Sou um buraco negro. Não te aproximes. Foge enquanto é tempo... mas sonha todos os dias comigo!»
Ambiguidade.
«Se o coração mandasse nos meus olhos...»
«Quem é o tirano?»
Outro. Quem quer que seja, tanto faz.
«O relógio.»
Ah sim. O relógio.
«Um relógio só marca as horas.»
Mas...
«Não tenho idade...»
«Tu tens. Eu sou um rio que corre já perto da foz. O teu desce, impetuoso, por entre montanhas. Se pudesse esperar por ti...»
«Infelizmente estou longe.»
«Vejo-te sempre a correr, cabelos soltos ao vento...»
A esperança. O sonho. Tudo está perdido.
«Quanto mais corro, mais me afasto.»
Oh!, manhã cinzenta!
«De qualquer forma, espero por ti.»
«Onde?»
«Em todos os sítios. Vou tentar ser o teu destino.»
Fatalismo.
«E eu vou ter contigo.»
Determinismo.
«Então, está bem.»
«A que horas nos encontramos?»
Expetativa.
«Podes vir quando quiseres. Corre. Vive livremente as águas do teu rio veloz. Vive até à exaustão. Eu fico aqui, à tua espera.»
«Como descobrir-te?»
Dúvida.
«...»
«E se eu te disser que nem sequer gostei dos teus poemas?»
«Paciência. Faço outros.»
«Para outra?»
Alívio em perspetiva.
«Gostas de mim?»
«Não sei.»
«E os teus olhos...?»
«Os olhos não falam comigo.»
«Tens receio de te entregares. Mas um dia vais mudar.»
«Em quê?»
Ansiedade.
«Talvez sejas o próximo rio.»
«Que rio?»
«Os rios são todos iguais. Trazem água...»
«Sim?»
«Diz só para mim aquele poema que fala de pôr do sol. É belo!»
«Esse não o escrevi!»
Riso escarninhos
«Pois não.»
«Então...?»
«Então o quê? Já adivinhei. Será a utopia (1)?»
«Todos menos esse. Traíste-me...»
Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete.
Foi uma paixão que ardeu serenamente à minha lareira do pôr do sol. Quando me apaixonei não dei conta. A Odete talvez tivesse razão. Havia o abismo das idades.
Mas... seria mesmo por causa da diferença de idades?No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.
Estavam ditas as palavras, talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me, daquele dia em que me disse pelo telefone que “estava a querer saber demasiado da sua vida privada”.
E o que me levou a querer saber demais?
Nunca lhe perdoei também a atitude sedutora que tomou comigo, enquanto continuava a namorar com o “rapazinho”. Digamos que foi uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir. Nunca lhe perguntei porquê (a Francisca disse-me um dia: «Ela grama-te aos molhinhos!»). Ou melhor: nunca quis saber porquê.
Estava a anoitecer quando saímos e fazia-se sentir uma brisa muito fria e cortante. A loja do encantador de serpentes já tinha fechado. Não sei se arrefeci ainda mais ao passar pela loja. O certo é que, estranhamente em junho, estava a bater com os dentes uns nos outros que nem castanholas. Não pensei em fresco, mas em frio. Tinha a Maria ao meu lado, junto ao portão da escola. Já não era frio que sentia. Um estranho arrepio percorreu o meu corpo dos pés à cabeça. Queria entender o fenómeno. Nada lhe disse porque estávamos sob escolta da Odete. Tanta coisa tinha para lhe dizer e deitei tudo a perder com a indiscrição daqueles versos ao jantar! Fiz mesmo borrada e não sei com que intenção. Mas o que estava feito, estava feito. Agora, se ao menos a Odete não estivesse presente, ainda tinha uma esperança.
«Pode ser que entenda que quero estar só com ela.» Pensei.
Mas a Odete continuava agarrada a nós como uma lapa, bem como aquele frio gélido, desagradável.
(«E qual é o meu papel?»)
Será que nesse jantar ela serviu de “corrente”?
A Maria pareceu adivinhar os meus pensamentos de “falo, não falo” e despediu-se logo, justificando-se que estava com frio.
Subi a escadaria da escola e dirigi-me para o pátio, onde tinha o carro. Parei. Vi-a atravessar a avenida para o outro lado, entrar no carro, ligar as luzes, arrancar de esticão. Senti que a Odete me espiava.
«Que estás a ver?» perguntou-me.
«Perdi-a. Perdia de vez...» Pensei.
«A brisa solta os cabelos...»
«O quê?»
«O que ouviste.»
Não sei se compreendeu, mas era a resposta adequada para a sua pergunta. A brisa soltava os cabelos. Sim.
De onde veio aquele frio que me gelou de alto a baixo?
No dia seguinte o Alfredo contou-me que notara, no fim do jantar, uma lagrimazinha nos olhos da Maria.
«Naturalmente estava comovida por lhe termos pago o jantar.»
«Naturalmente...» Respondi.
Ingénuo. Então e os versos que lhe roubei para oferecer à Odete?
Sim, porque os versos eram dela. Escrevi-os só para ela e um copo de branco a mais deixou tudo a perder."
«Mas vais escrever!»
«Para ti?»
«Primeiro preciso de certificar-me se o meu crepúsculo é eterno. E se for, terei todo o tempo do mundo para te ver chegar um dia...»
«... cabelos soltos ao vento. Uma treta, sabes?»
«Desculpa. Devia ter montado o cavalo da coragem...»
«Sempre sonhador. Cai em ti, Mário!»
De facto é tempo de parar. E nunca valeu a pena porque ela só gostava de ser amada.
Quanto à utopia, é algo que só se realiza no futuro, lá longe, no fim da estrada aonde já cheguei e de certeza onde a Maria não está nem nunca estará...

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