sábado, 28 de julho de 2018

Contigo à beira-mar...

Quantas vezes voltei aqui para inspirar profundamente o forte odor a maresia e lembrar o tempo em que dizia que os teus beijos sabiam a morangos silvestres?
Quantas vezes estive aqui, à beira-mar, para sonhar contigo?
Quantos dias cinzentos me trouxeram aqui, à beira-mar, porque sentia em força a tua presença e assim os dias pareciam ser azuis?
A neblina das memórias distorcidas esconde o teu rosto, mas lembro-me de ti. Corrias feliz pelos campos e vinhas ao meu encontro de braços abertos, cabelos soltos ao vento, olhos muito abertos de gazela espantada, à procura de um porto de abrigo, até que paravas a dois metros e olhavas para lá do horizonte onde eu não estava. Então pensava que a tua timidez não disfarçava sequer a ingratidão quando te pedi ajuda e disseste que não. Por outro lado, gostavas de ser amada, mas a magia da união de duas almas perdidas nunca se concretizou. Amavas os meus poemas mas nunca te identificavas com eles.
Porque foi, sorriso engraçado, que nunca me amaste?
Pensando melhor, para sonhar com um grande amor, será preciso recuar ainda mais no tempo nublado da mulher única e perguntar…

Quantas vezes pensei em ti, à beira-mar, e vi os teus olhos tristes, perdidos na distância, algures, à procura do tempo que foi?
Foi o tempo do odor da rosa vermelha, uma rosa de espinhos acerados que um dia cravaram fundo e doeram. Um tempo curto porque, sem que entendesse, as pétalas vermelhas, cor da paixão obsessiva, foram levadas para longe pelo vento sul, rumo às terras do nunca. Partiste para sempre, mas ainda ontem alguém me disse que te ouviu chorar na dimensão proibida.
Porque acontece sempre assim, hoje voltei à beira-mar e fiquei à espera da onda que já aconteceu. Perdi-a. Perdi o beijo da espuma que se desfez em nada nas areias douradas da praia do nada que eras tu. Ou o muito de ti que nunca tive. Ou o pouco que me deste e que esbanjei. O nosso sonho adormeceu à beira-mar e nunca mais tive o luar dos teus olhos que beijava com sofreguidão como se estivesse escrito que era a última vez.
Depois, sonhos eróticos vieram ter comigo, aqui, à beira-mar, nuns olhos de amêndoa que quase me arrastaram na miragem do pó branco que te destruiu. Ignorei a tua súplica de “pobre sereia abandonada”, pois lamentar-te era o mesmo que manter-te na distante.
E porque era o meu destino vim mais vezes à beira-mar esperar por outras ondas. Adormecer numa longa noite serena e esperar, placidamente, por outra onda. A noite em que te verei, olhos doces e melados, trazida pela onda, para pisar as areias beijadas pela espuma que não se vai desvanecer. Sem tempestades interiores, nem furacões a passar.
E quando acordar...?, verei na areia só as marcas dos teus pés delicados que partiram para outra longa caminhada e mais nada?
É verdade que acreditei que te ia encontrar um dia na mesma estrela que tinha escritos os nossos nomes e voltei a adormecer à beira-mar até que um amanhã diferente me acordasse e eu te visse e tu me visses… aqui à beira-mar, onde desemboca um extenso estuário de águas calmas depois de uma longa corrida selvagem e alucinante, rio abaixo.
Mas não basta encontrar-te à beira-mar. Nem sermos bipolares de dias ora cinzentos ora azuis. Nem termos o mesmo sol interior que nos aquece (que sol é este...?). Nem o luar dos teus olhos que traga de volta o sonho. Nem o sonho de adormecermos à beira-mar.
Então o que falta?
Muito simples. Não basta um de nós amar e o outro apenas falar de amor. Temos que nos entregar ao amor para assim o conhecermos. E se for como digo, nada mesmo nada neste mundo nos pode destruir. Só a inevitabilidade de um dia voltarmos a ser nada, filhos pródigos regressados às estrelas, quem sabe, parte comum da espuma que se vai espraiar mais uma vez com doçura nas areias douradas da praia dos sonhos que desejamos serem reais.
E que mais falta ainda?
A magia de estar à beira-mar onde te vejo ao meu lado, cabelos soltos ao vento e molhados pela espuma salgada das ondas de ontem.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Rumo à utopia



Valerá a pena equacionar um problema sem solução?
Separa-nos uma muralha de betão e estamos tão perto!, à distância de beijar os seus olhos de gazela assustada, mas que não foge, que parece observar o jogo, expectante, no entanto sem responder a uma única jogada.
Eu crepúsculo e tu rosa em botão. Não temos idade para amar. É proibido amar neste mundo cruel que atira os amantes contra os preconceitos da sociedade, que lhes oferece como certo o desencantamento perante obstáculos intransponíveis. Um mundo em que só a morte é certa e essa não escolhe idades.
Quanto à vida, não tem sentido quando não pode ser nosso o objeto desejado.
E, se não tem sentido, porquê continuar a viver com o silêncio das palavras e com diálogos absurdos entre olhos?
Estou perante a equação de um problema insolúvel, talvez porque não consegui montar o cavalo da coragem...
Então?, se estamos assim tão certos da mesma verdade, que nos impede de seguir juntos em frente, sem olhar noutra direção que não seja a nossa?
Ou não estamos...?
Que me impede de beijar as tuas mãos delicadas, os teus belos olhos de gazela assustada que ainda ontem procurava a proteção em mim, o teu porto de abrigo.

Sinto o sol. Aquece-me. Mas vai cair mais. Lá ao fundo. Onde o mar já  não se avista. Vai chegar o crepúsculo. O vermelho frio e distante que precede a negritude. Vai chegar o crepúsculo e eu vou fechar enfim os olhos. Sonhar. Sem adormecer.
Onde estou? Será que adormeci mesmo? Ah!, estou bem acordado. E que vejo? Uma mesa comprida. Muitas cadeiras em frente. Vai começar um debate. Não. Não vejo assistência. As cadeiras estão vazias e desarrumadas. Talvez que o debate já tenha acabado. Talvez eu esteja à espera das pessoas que nunca chegarão. O melhor é sentar-me. Assim. Virado  para as cadeiras. Tenho que me habi­tuar a enfrentar as multidões. A Madalena disse um dia que estava a ver em mim um Pastor. Não é verdade. Nunca consegui­rei. A minha luz apaga-se quando vejo multidões na frente.
Que vou dizer, se estiverem à espera da minha palavra?, que hoje sou um lago de bonança onde todos os barcos podem navegar sem perigo, e amanhã um mar alteroso que leva os mesmos barcos para o fundo?
A Madalena enganou-se. Mais que uma vez, aliás.
«Temos que nos amparar um ao outro...»
O tempo sem tempo já passou. Talvez que até nunca tenha existido. Sou exímio em criar situações irreais. Talvez seja o resultado da minha imaginação doentia. Talvez. Por exemplo, entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu. Olho em volta e só estamos nós. Não há dúvida. Deve conhecer-me. Então, devo sorrir. Talvez seja melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não. Não vá haver outra pessoa na sala.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Cabelos castanhos, compri­dos. Fico sentado. Parece que já estava à espera dela. Curioso.
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
«Extraviou-se...»
«Era para outra!»
Mensagens. Recados de um diálogo que foi tragado pelas engrenagens impiedosas do tempo. Quero dizer qualquer coisa e só me vem à cabeça a  imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento e partiu para longe. Quem sabe se nos conhe­cemos noutro tempo e noutro espaço!
Agora reparo. É atraente. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. A palma da mão está virada para cima. Interrogo-a com o olhar.
Precisa de mim?
De certa maneira. Quer que pegue na sua mão.
E que vou fazer com aquela mão macia?
Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido. Agora que chegou o crepúsculo. Agora com o sol a cair no horizonte, escondido, é demasiado tarde. Não sou eterno.

 
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e os olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me outros tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Agora, ela estendia-me a mão e estava à espera. Sorrindo. Um pouco embaraçada. Era tímida.
A timidez desculpa muitas faltas; mas... as pessoas tímidas serão também ingratas?
«Que jovem tão sedutora!» pensei.
Talvez que tivesse entrado na sala errada...
Acabava de pegar-lhe na mão e ela estava à espera.
Mas que ia fazer?, acariciar a mão da jovem?
Comecei a olhar fixamente para a mão, como quem planeia uma viagem. Continuávamos sós naquela sala mágica que tinha uma porta fechada e por onde não ia entrar mais ninguém.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parecia ser secreto. Quem sabe... também o amor!
Ou era paixão?
Tentava adivinhar. Tentava adivinhar na sua respira­ção apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Nos olhos espantados e muito abertos. Na mulher que se oferecia, corpo e alma. Tentava adivinhar se ia perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana.
Na verdade nesse dia perdi uma coisa importante, a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apre­ciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os nossos olhares guardaram. Não usei a porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como apelo de uma mulher carente. Senti que era uma mulher rendida ao amor. Nesse momento foi o que senti. Eu próprio andava perdido em meandros de paixão e receio. Tudo podia ter acontecido. Era só um gesto. Um aperto mais forte e o mundo seria meu. Mas não sei o que aconteceu. Preferi assumir o controlo. Venceu o receio. O abismo das idades. Inconscientemente foi isso. Nesse dia fui eu quem fugiu para lá da coragem. Continuei na busca de adjetivos que nada tinham a ver com a sua voz ofegante, com o momento mágico que estava a acontecer. Fingi descobrir o passado e o futuro, quando tinha o presente bem a meu lado.
Agora é tarde. O sol encobriu-se. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o sol. Parece um botão de rosa. Não. As rosas não são cinzentas...
Sentido da responsabilidade, secretismo, timidez.
A nuvem ofuscou o sol no momento fatal em que, todo eu futurólogo, peguei na mão dela e, aos poucos, o nosso  destino se foi distanciando. Fatalmente distanciando. 

Sonhei que corrias ao meu encontro...
A tua vida continuava sendo uma corrida. Apareceste de repente, tal como aconteceu na realidade, e trazias uns pontos para eu acabar de ver. Portanto, estávamos em trabalho de equipa. Havia umas perguntas para classificar. Sentaste-te à minha direita. Deste-me as folhas. Peguei numa e fiquei a ler as perguntas. Uma delas era qualquer coisa ligada à Química. As respostas tinham fórmulas químicas e eu não estava dentro do assunto. Então, ajudaste-me, mas disseste:
«Vá!, despacha-te!»
Achei piada. A tua voz de gaiata (já a ouvira noutros tempos?) a dar-me ordens. E eu, um Leão muito indeciso. Tudo ao virado do avesso.
O tempo passava e não entendia nada. Cada vez tinhas mais pressa. E eu todo o tempo do mundo, na minha ignorância. Mas começavas a ficar ansiosa. O tempo corria. E eu cada vez mais bloqueado. Não conseguia. Desconhecia as resposta. Voltaste a ajudar e pus uns “certos” em duas ou três questões. Mas não ia conseguia acabar. Não ia conseguir. Olhei para ti e não me lembro de mais porque acordei.

Este sonho joga com o futuro. É o tal problema que não posso resolver sozinho.
Não sei o que pensas. Não sei o que dizem os teus olhos de gazela espantada aos meus que olham os teus com firmeza. É um diálogo entre eles. Só entre eles. Como se o coração estivesse dentro nos nossos olhos e a parte restante dos corpos pertencesse a outros seres, frios, que se interrogavam e chegavam a conclusões drásticas. Esse era o problema. Se o coração mandasse e se a poesia cantada pelos olhos pudesse ditar as leis certas talvez que tudo viesse a acontecer de forma diferente. Mas não havia linguagem pura em cabeças que pensavam friamente. Nem palavras de despedida. A esperança era coisa proibida. O sonho abortara sem ter nascido naquelas cabeças que comandavam o coração.
Tínhamos relógios que marcavam horas diferentes. Era impossível acontecer poesia quando uma barreira de idades não deixava passar os versos.
Apesar de tudo, bruscamente:
«E a minha poesia? E a tua expressão de agrado?»
«Quando a li senti que era a tua heroína. Só isso...»
Desolação.
«Eu queria mais poemas!»
Esperança.
«E eu queria fugir contigo para lá das estrelas mais distantes onde ninguém pudesse apontar-nos um dedo.»
«E que interessava se nos apontassem um dedo?»
Utopia.
«Queria que me levasses para um sítio onde ninguém pudesse rir-se de nós...»
Secretismo.
«Só agora dou conta dessa tua faceta.»
«Talvez porque não sou eu! Mas, por outro lado, não há nenhuma estrela que nos possa abrigar.»
«Porquê?»
«Também lá os nossos relógios não vão marcar o mesmo tempo.»
«Vá lá... Podemos procurar.»
De novo a esperança.
«Mas há milhões e milhões de estrelas...»
«Podemos fingir que encontramos a estrela. Podemos fingir sem sair de cá. Montamos o cavalo alado da coragem. Os dois. Ou então fugimos para longe na magia...»
«Que magia, Mário?»
«Nem que seja a magia do sonho, Maria.»
Desencanto.
«Então nunca te terei!»
«Não há só música na outra face da cassete. A utopia fez-se realidade. Tens os poemas. Ouve e responde.»
«Não sei fazer poemas.»
Fuga.
«Mas os teus olhos são o mais belo poema que já ouvi!»
«Os meus olhos não falam. Os teus, sim. E devoram.»
«Tens razão. É o que diz a Odete. Sou um buraco negro. Não te aproximes. Foge enquanto é tempo... mas sonha todos os dias comigo!»
Ambiguidade.
«Se o coração mandasse nos meus olhos...»
«Quem é o tirano?»
Outro. Quem quer que seja, tanto faz.
«O relógio.»
Ah sim. O relógio.
«Um relógio só marca as horas.»
Mas...
«Não tenho idade...»
«Tu tens. Eu sou um rio que corre já perto da foz. O teu desce, impetuoso, por entre montanhas. Se pudesse esperar por ti...»
«Infelizmente estou longe.»
«Vejo-te sempre a correr, cabelos soltos ao vento...»
A esperança. O sonho. Tudo está perdido. 
«Quanto mais corro, mais me afasto.»
Oh!, manhã cinzenta!
«De qualquer forma, espero por ti.»
«Onde?»
«Em todos os sítios. Vou tentar ser o teu destino.»
Fatalismo.
«E eu vou ter contigo.»
Determinismo.
«Então, está bem.»
«A que horas nos encontramos?»
Expetativa.
«Podes vir quando quiseres. Corre. Vive livremente as águas do teu rio veloz. Vive até à exaustão. Eu fico aqui, à tua espera.»
«Como descobrir-te?»
Dúvida.
«...»
«E se eu te disser que nem sequer gostei dos teus poemas?»
«Paciência. Faço outros.»
«Para outra?»
Alívio em perspetiva.
«Gostas de mim?»
«Não sei.»
«E os teus olhos...?»
«Os olhos não falam comigo.»
«Tens receio de te entregares. Mas um dia vais mudar.»
«Em quê?»
Ansiedade.
«Talvez sejas o próximo rio.»
«Que rio?»
«Os rios são todos iguais. Trazem água...»
«Sim?»
«Diz só para mim aquele poema que fala de pôr do sol. É belo!»
«Esse não o escrevi!»
Riso escarninhos
«Pois não.»
«Então...?»
«Então o quê? Já adivinhei. Será a utopia (1)
«Todos menos esse. Traíste-me...»

Ainda antes do fim do mês fizemos no Pitéu o habitual jantar de fim de ano letivo, só para professores da noite. Alguém convidou a Maria. Talvez a Otília, a mesma colega que a fez reaparecer na escola um mês antes, talvez por causa de umas preparações em lâmina delgada para a aula de Ciências. Contra as minhas previsões, não faltou. A leitura das mãos previa que ela ia levar uma vida subterrânea. Ora vida subterrânea queria dizer que não voltava a vê-la tão depressa. De facto, tinham corrido alguns meses, e também houvera interferência da colega que a tinha convidado. Voltaria a desaparecer. Mais tarde.
Achei-a ainda um pouco abatida. Confessou-me que esteve internada no hospital, por causa da alergia habitual de fins de maio, quando certos pólenes se libertam e ficam pairando no ar, agredindo os olhos, as mucosas do nariz e da boca de coitadinhos como nós. Desta vez a alergia atacou com força ou ela tinha as defesas mais enfraquecidas. Em boa verdade, a Maria teve um princípio de asma.         
Ao jantar fiquei frente a frente com a Odete, e a Maria ao lado dela. Juro que não fui eu quem destinou os lugares. Aliás, parece que ninguém destinou os lugares. Elas apareceram assim: a Odete na minha frente e a Maria ao seu lado. Sem tirar nem pôr.
E no jantar, como foi?
Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas  palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. 


Foi uma paixão que ardeu serenamente à minha lareira do pôr do sol. Quando me apaixonei não dei conta. A Odete talvez tivesse razão. Havia o abismo das idades.
Mas... seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da “dama de negro”!
Sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria...
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete...» deve ter pensado.


Estavam ditas as palavras, talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me, daquele dia em que me disse pelo telefone que “estava a querer saber demasiado da sua vida privada”.
E o que me levou a querer saber demais?
Nunca lhe perdoei também a atitude sedutora que tomou comigo, enquanto continuava a namorar com o “rapazinho”. Digamos que foi uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir. Nunca lhe perguntei porquê (a Francisca disse-me um dia: «Ela grama-te aos molhinhos!»). Ou melhor: nunca quis saber porquê.
Estava a anoitecer quando saímos e fazia-se sentir uma brisa muito fria e cortante. A loja do encantador de serpentes já tinha fechado. Não sei se arrefeci ainda mais ao passar pela loja. O certo é que, estranhamente em junho, estava a bater com os dentes uns nos outros que nem castanholas. Não pensei em fresco, mas em frio. Tinha a Maria ao meu lado, junto ao portão da escola. Já não era frio que sentia. Um estranho arrepio percorreu o meu corpo dos pés à cabeça. Queria entender o fenómeno. Nada lhe disse porque estávamos sob escolta da Odete. Tanta coisa tinha para lhe dizer e deitei tudo a perder com a indiscrição daqueles versos ao jantar! Fiz mesmo borrada e não sei com que intenção. Mas o que estava feito, estava feito. Agora, se ao menos a Odete não estivesse presente, ainda  tinha uma esperança.
«Pode ser que entenda que quero estar só com ela.» Pensei.
Mas a Odete continuava agarrada a nós como uma lapa, bem como aquele frio gélido, desagradável.
(«E qual é o meu papel?»)
Será que nesse jantar ela serviu de “corrente”?
A Maria pareceu adivinhar os meus pensamentos de “falo, não falo” e despediu-se logo, justificando-se que estava com frio.
Subi a escadaria da escola e dirigi-me para o pátio, onde tinha o carro. Parei. Vi-a atravessar a avenida para o outro lado, entrar no carro, ligar as luzes, arrancar de esticão. Senti que a Odete me espiava.
«Que estás a ver?» perguntou-me.
«Perdi-a. Perdia de vez...» Pensei.
«A brisa solta os cabelos...»
«O quê?»
«O que ouviste.»
Não sei se compreendeu, mas era a resposta adequada para a sua pergunta. A brisa soltava os cabelos. Sim.
De onde veio aquele frio que me gelou de alto a baixo?
No dia seguinte o Alfredo contou-me que notara, no fim do jantar, uma lagrimazinha nos olhos da Maria.
«Naturalmente estava comovida por lhe termos pago o jantar.»
«Naturalmente...» Respondi.
Ingénuo. Então e os versos que lhe roubei para oferecer à Odete?
Sim, porque os versos eram dela. Escrevi-os só para ela e um copo de branco a mais deixou tudo a perder."   

«Mas vais escrever!»
«Para ti?»
«Primeiro preciso de certificar-me se o meu crepúsculo é eterno. E se for, terei todo o tempo do mundo para te ver chegar um dia...»
«... cabelos soltos ao vento. Uma treta, sabes?»
«Desculpa. Devia ter montado o cavalo da coragem...»
«Sempre sonhador. Cai em ti, Mário!»
De facto é tempo de parar. E nunca valeu a pena porque ela só gostava de ser amada. 
Quanto à utopia, é algo que só se realiza no futuro, lá longe, no fim da estrada aonde já cheguei e de certeza onde a Maria não está nem nunca estará...

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Amo-te muito!



Amo-te muito. Sem ti não sei viver. A minha vida é tua. Não sei o que será de mim se te perder. Bla bla bla...
São frases simples que caem sempre muito bem numa mulher que se sente amada. Mas neste caso as coisas não são como parecem. Sei que tens uma dúvida legítima e eu uma pedra no sapato. Assim, admito que vais contrapor que as palavras ouvidas da minha boca são iguais às que já disse a muitas mulheres. E é verdade. Não o nego.
Porque entretanto não perco de vista os teus olhos lindos e julgas ver nos meus um ar de interrogação, emendas de imediato:
«Parecidas...»
Porque não desarmo e continuo a olhar para ti, desconfias e reconsideras:
«Já as disseste a algumas mulheres! É o que penso.»
Porque continuo ainda a olhar para esses teus olhos melosos, cedes um pouco e desta vez és tu que te interrogas sobre o que os meus olhos te querem dizer, embora disfarces o momento de fraqueza com nova justificação para as palavras que te disse e que interpretaste como outras que não te disse.
«Não negues... Já disseste a mais que uma mulher. A mim e a outra, pelo menos.»
Porque os meus olhos continuam presos nos teus e “contam coisas que parecem agradar-te”, mesmo assim vais por outro caminho e acreditas que estas frases simples só te disse a ti e a mais ninguém, e é por isso que vislumbro um brilho diferente nos teus olhos.
Porque já disse a mais que uma mulher estas frases simples e eficazes, a verdade a que chegaste há pouco ficou ferida de morte. Daí a pedra que não me sai do sapato.
Então...?
Há uma outra verdade bem mais simples escondida na frase “amo-te muito”.
«Sabes, mesmo que já tenha dito "amo-te muito" a outras mulheres, a verdade é que te amo muito. As outras já passaram. Como as águas que correm no rio e não podem voltar atrás.»
«Não podem?»
«Bom, não voltam.»
«Diz-me se é mesmo verdade, ou estás a cantar a "canção do bandido"?»
Pego nas suas mãos e beijo-as. Sinto que estremece.
«Sei mentir. Não é o caso. Sabes o que querem dizer os meus olhos?»
«Não sei se faço bem. Não me vais ferir outra vez?»
Porque será que quero acreditar na versão dos meus olhos que estão a dizer aos teus o que nunca disseram a outra mulher, se já houve uma vez e dessa vez também te menti?

Culpa


Querias voar, mas eu protegi-te sempre. Disse-te que não. Que era impossível. Não conseguias voar. Comigo tinhas tudo. Com o teu sonho perdias tudo. 
E tu que fizeste?
Teimaste. Disseste que sim. Que podias voar. No espaço que era imenso. Em qualquer espaço. Longe do meu mundo. Das minhas asas. Em plena liberdade.
Ainda insisti. Voltei a dizer que não. Que te perdias. Que não conseguias voltar. Mas tu insististe outra vez. A ânsia de partir era tanta que até disseste que não querias voltar.
Então não tive outra hipótese senão cortar-te as amarras. Deixei-te partir, mesmo sabendo que nunca mais voltavas. E foste. Sem mim. Com o sonho que permitia tudo. Até a uma ave sem asas poder voar.
Devia ter-te acorrentado porque não sabias voar, ou acorrentar os meus sentimentos e ensinar-te a voar?
Só sei que, do chão, vi o teu rosto sorrir. Livre. Solta. Feliz. Voando com as tuas asas rumo à liberdade.
E que destino era esse para uma ave sem asas que queria voar?














segunda-feira, 23 de julho de 2018

A tragédia de ter voltado




F

oi uma tragédia ter voltado.
Estou para aqui, só, sem esperança de voltar a ser como era. À minha volta a neblina fecha o horizonte da viagem e não sei como  chegar igual a mim próprio.
Agora que voltei, todas as noites adormeço com o mesmo pensamento e todas as manhãs acordo com a certeza amarga que vou continuar a viver por viver. Tudo o que acontece soa a negritude e desencanto e apresenta-se de forma descontinuada, como se estivesse a assistir a fragmentos de uma vivência já passada. Só pode ser. O passado é agora o meu presente. Nunca mais terei o amanhã natural sucessor de ontem. O meu céu era azul por mais cinzento que parecesse. Havia sempre um amanhã a pintar numa nova tela de cores alegres. Hoje não.
Não devia ter voltado. Cheguei demasiado tarde para dar a volta à tragédia que caiu sobre mim. Não tenho forma de fugir deste lago de águas estagnadas.
Ah!, meu amor... porque não me levaste contigo quando, já adormecido, acreditava que o nosso sonho estava de volta?
Tenho saudades tuas! Partiste sem dizer adeus. Ou disseste adeus e eu não quis acreditar. Agora, deste lado onde estou, não te tenho e sinto-me cada vez mais só. Não é verdade que a esperança renasça ao despertar, pois não passa de uma ilusão a ilusão de ser amado por quem não me ama. É isso. A ilusão de estar vivo quando é verdade que não tenho quem me tem.
Desde que foste para longe e continuei a viver a vida foi como se um dos relógios do tempo parasse e outro, irreal, continuasse até que aconteceu aquilo e tive hipótese de não voltar. O limbo acolheu o meu corpo gélido mas tive de voltar. Não porque desejava muito voltar. Sim porque era um grande imitador de viver.
Julgava que tinha uma missão a cumprir e enganei-me. A cortina descerrou-se e então pude ver a verdade.
Vem. Embala-me o sono e deixa que adormeça serenamente para acordar num amanhã diferente em que a morte é a nova vida. De morto já não passo. Do pântano já não saio. Do mesmo dia já não passo.
Nada importa ter voltado se ainda continuo à espera de voltar para ti, para o lado de lá onde me tiveste e, mais uma vez, deixaste que me trouxessem de volta. 
Se voltei e não sou, então quem sou?
Ah!, se ao menos tivesse a força dos outros tempos!

Voltei de um sonho ruim. Voltei à vida. Infelizmente. Não é o mesmo que voltar para a vida. Esta, tal como era, tal como foi, não voltará. Os caminhos que segui, quando acreditei que havia um tempo infinito para amar, recentes ou recuados, não voltam mais. Só imitações.
Dou comigo a pensar se o fictício tomou definitivamente conta de mim. Se assim foi e assim é, então o sonho ruim continua e o meu real está manietado e à mercê dos vermes mal o corpo grosseiro se afunde na terra ou o fogo o consuma.
Mais valia ter adormecido na viagem por via de outra alternativa. A hipótese de poder entrar no túnel com a luz mais intensa ganharia outra consistência.
Não devia ter voltado tão cedo porque não a vi. Com o seu vestido branco. Aquele sorriso doce. O olhar triste, perdido no horizonte...
Voltando ao presente, talvez que um dia explique o motivo que me levou a não acreditar (e se transformou em mito) na certeza que tinha de haver sempre um tempo para amar.
Mentira!, porque hoje estou só. O corpo está a recuperar do sonho ruim, mas parece que o espírito morreu. Sou levado a reboque pela vida. Um fio frágil prende-me ainda ao desejo de ser aquele que fui, de acontecer outra vez a mesma poesia que já aconteceu. Mas não. Tenho que me render à evidência. Estou morto.
Quem me dera não ter voltado!

domingo, 22 de julho de 2018

Obsessivamente


Esta irresistível obsessão que me leva à descoberta, por caminhos obscuros, do sonho azul que ainda mora cá dentro...
Esta irresistível obsessão que me conduz ao teu encontro, um grande lago de águas paradas, onde moras, longe do coração e muito perto do ódio que retribuo com mágoa por teres partido muito cedo...
Obsessivamente és o último mistério que vou desvendar, se for verdade que tens olhos tristes e choras com pena de não me teres...
Obsessivamente cansado de procurar o teu mundo que me escapa em cada cortina que rasgo e parede de betão que surge para logo te esconderes atrás...
Obsessivamente destruído por me teres roubado a liberdade de ultrapassar o imaginário cercado e partir para outras auroras...
Obsessivamente desencantado de rever os teus olhos tristes de ontem e de saber que eles já não vertem lágrimas no mundo escuro onde te escondes...

Obsessivamente sonhando que és o meu anjo-da-guarda, sonho também que esperas obsessivamente por mim do outro lado da porta...
Obsessivamente invisível, ris, no escuro, do desejo obsessivo e fatal de querer encontrar os teus olhos que não choram por mim, porque não consta que vingança e ódio sejam o mesmo que amor...
Obsessivamente o desejo obsessivo de te esquecer, é o fim obsessivo de acreditar que não tens olhos tristes e não podes ser a verdade que
procuro...
Obsessivamente és a história interminável de amor e ódio que revejo todos os dias...

Obsessivamente...

terça-feira, 17 de julho de 2018

Olhaste de uma maneira!

dedicado a uns olhos tristes que um dia se esconderam atrás de outros olhos…



Olhaste de uma maneira
tão diferente e tão igual
que despertaste a paixão
do homem que não tiveste.

Olhaste de uma maneira
tão diferente e tão fatal
que perdi-me na miragem
dos sonhos adormecidos
no tempo que não voltou.

Olhaste de uma maneira
tão diferente e tão igual
que o poeta que não sou
mentiu ao sonho hibernado
nos olhos de outra mulher
tão diferentes e tão iguais 
que eu julguei acreditar
ser setembro todos os dias  
iguais ao que passou ontem
seres só minha sem te ter
e o setembro não mais voltar…
         
          


O homem que acalmava o mar



O vento soprava forte e o mar tenebroso rugia; ondas alterosas avançavam nas areias da praia, deixando espuma doce que logo se desvanecia…


Era tempo do sol nascer
vindo de outro acontecer;
era tempo de chegar
o homem que acalmava o mar.
Um homem estranho e só
esse homem que acalmava o mar.
Marinheiro de sonhos vividos
em ondas de maré vazia.

O homem rodou o olhar
rodou e voltou a rodar...
Olhava na distância e parecia ter
a força de possuir e de perder.
Ondas erguidas sonhos  destruídos
barcos no fundo  esquecidos.

O homem falou de mansinho e logo o mar acalmou;
falou outra vez de mansinho e mar adentro avançou...

Longos caminhos ondas perdidas
maré vazia  horizonte sem linha...


Também eu fui como tu
que muitos barcos naufragaste
e vidas muitas vidas mutilaste! 
                                   
"Eu sei que somos iguais
nas paixões que deixámos;
não avances mais que não te deixo passar
o teu limite é o fim duma maré que vazou!"

O homem sorriu e mar adentro continuou...
Que ele recolhesse a fúria e o deixasse passar
porque só queria procurar... procurar...

E o mar ficou quedo a ver
aquele homem a avançar...
Estranho homem estranho dom

na força p'ra acalmar o mar.

Mas a fúria logo voltou...
Ondas altas  vento forte
que o homem de novo acalmou.
Tempestades interiores
caminho aberto... aberto.
Mar azul  céu cinzento
sonho azul  tempestades interiores
no homem que acalmava o mar.

O mar que rugia forte
ficou quieto... muito quieto
mar sereno mar azul
caminho aberto  aberto
mas à espera do vento sul.

E o homem que acalmava o mar?


Esse ninguém mais o viu
quando mar adentro avançou
no último sonho que se fechou
na última caminhada que o mar tragou...

Estranho homem  e
stranho dom.
Alguém o viu?
Alguém o inventou?

Só tu sabes  ó
 mar salgado
daquele homem que te acalmou...