quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O vazio dos dias

 



Eles rumam para o amanhã
das galáxias distantes
e o ressoar dos seus passos
enche-me o vazio da alma
que a chuva ácida gretou
até esculpir o ideal
no voo das nuvens
para lá do azul e de mim...


Só e junto ao mar
pergunto às areias da praia
se foi na última onda
que a beijei e possuí.


Sentado à beira-mar 
sinto no meu rosto
a brisa do entardecer;
espero por ela em vão
e revejo com saudade
a ondulação dos teus seios
submissos ao desejo.


 Só e sentado à beira-mar
pergunto aos ladrões do tempo
se é tempo de morrer vivendo
ou se o tempo já não existe.

Lá longe  muito longe
ressoam fortes as passadas
dos caminheiros do éter
meus companheiros de ontem;
triste e só à beira-mar
fico desencantado
de ser mais um dia
e o vazio do outro
ter ficado para trás...


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Dois corações

 


Canta alto coração
belas canções para mim
há quanto tempo meu Deus
foste a flor do jardim
já não te oiço nem sinto
porque escolheste o teu fim.

Hoje só vive a saudade
neste peito já cansado
quem me dera  sorriso gaiato
ter-te para sempre a meu lado
amo-te mais do que à vida.

Não és aquela de outrora
já fugi de um triste fado
trinar pungente de guitarras
nostalgia que ainda sinto.
Canta alto coração
agora que estás a meu lado
canta-me o nosso fado
sem ilusões nem quimeras
nem fantasmas de outrora.

Canta meu coração
despedaçado de dor.
A esperança da primavera
que está próxima  vai chegar
serei teu e serás minha
ama-me para lá do poente
nunca mais me deixes só
não queiras que adormeça
nesta cama sem amor
gélida ao amanhecer.

Canta para mim o teu fado
cheio de amargura e de dor
estou contigo para te abraçar
hoje amanhã e sempre
porque este inverno cerrado
tem o seu tempo a findar.

Meu amor minha vida
a esperança ontem perdida
vem de novo com a primavera.


Este amor que não tem fim...

O tempo da rosa vermelha



Coração ingrato que ignoras os desencantados. Coração ingrato e cego. Foge da noite e volta para o azul. Molha os pés na espuma da onda que vem e já não volta. Pisa as pegadas que ficaram para trás e vem ao meu encontro. Estou à tua espera. Não demores. Amanhã pode ser tarde.
Chegou o tempo, coração cruel que dilaceras os segredos da memória adormecida. Vem ter comigo. Aceita a rosa vermelha que nunca te dei e foi colhida no tempo dos amantes, quando a esperança ainda morava comigo. Vem compor a sinfonia para o crepúsculo.Vem antes que seja tarde e a última viagem já não tenha partida. Continuo à tua espera. No silêncio do espinho cravado fundo. Na dor insensível do grito abafado.
Coração frio que jazes na terra dos esquecidos. Vês o dia e a noite pela fresta que se abriu quando te procurei. Há rosas brancas sobre a tua campa e o vento que vem de ti uiva, irado, porque uma promessa não foi cumprida.
A chuva cai em bátegas gélidas na terra ensopada, ontem seca de lágrimas que não foram choradas.
Não te vejo nem oiço a voz que dizem vir das profundezas, mas sinto-a.
«Vem deitar rosas vermelhas na ilha que me ofereceste. Não quero rosas brancas. Lembram a morte e eu estou viva em ti. E depois, vai ver-me à casa onde nasci e me fiz na rapariga do vestido branco que te amou sempre...»
Dizem que choras, que ouvem o teu soluçar angustiado. Pobre de mim, que sou cego e surdo para o teu mundo que está para lá da última cortina que não consigo abrir. Fecho os olhos para imaginar como eras. Só vejo um anjo de olhar triste. Tão  abandonada estás nesse cárcere que tem as frestas donde vês os dias e as noites! 
E sobre a pedra alva que te cobre, tens por companhia rosas brancas, já secas. Rosas brancas que eu não ofereci ao meu amor. 
Foste o primeiro amor. A primeira rosa vermelha. Levou-te a morte. Nunca mais te verei. 

Fecho os olhos e sonho...
Como era o teu olhar triste e a melodia da voz que não ouvi há pouco?
Não me lembro.
E onde estão os teus lábios rubros que esconderam as últimas palavras? 
Foi há muito. No tempo da primeira rosa.
Queria ver-te, nem que seja uma última vez. Voltar à doçura dos teus lábios. Possuir-te até à exaustão. Acordar a semente adormecida desde o dia do desencantamento.
Como foi possível perder-te tão cedo?
Se ao menos me desses um sinal...

Até Deus me abandonou. Não há rasto de azul. Apenas vejo na frente um deserto imenso de solidão e desespero. Dói-me a alma. A carne mirra. Os ossos começam a ficar deformados. A morte ensaia o assalto. Pela primeira vez penso que o tempo vai parar. Talvez amanhã. Talvez depois. E mesmo no parar do relógio, receio que vamos continuar desencontrados do outro lado da porta.


domingo, 7 de novembro de 2021

Vereda da agonia


TERÇA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2008

Vereda da agonia


Chuviscava. Indiferente à chuva, seguia pela vereda. Sabia onde a ia encontrar. E não me enganei. À hora exata lá estava ela. Chamei-a. Simulou não me ver. Pensando melhor: não me viu.
Passou por mim. Chamei-a. A chuva ecoou em dilúvio, um trovão rugiu e o vento assobiou a sua canção preferida. A voz perdeu-se.
Agora o silêncio é o senhor absoluto da vereda. A chuva abrandou. Um último raio rasgou o negro do céu. Fico expectante. Pressinto a sua presença. Há feromonas no ar gélido.
Ela está algures. Os seus olhos cor do carvão fitam o horizonte, algures...
E algures é finalidade?

Já não a vejo. Talvez tenha sido uma simples alucinação.
A sós com as trevas da minha solidão, revejo o anoitecer inevitável que me trouxe mais uma visão. Chuviscava. Indiferente à chuva, ela seguia pela vereda. Apurei o ouvido e ouvi o vento entoando uma canção. O choro da desconhecida. E então percebi...

Encerrada num corpo mortal, voltara do outro lado da porta. Era uma alma perdida que procurava o que os seus olhos não atingiam. E o impossível era ele, o espírito da agonia, um outro espírito que a tinha destroçado em vida. Eu que queria que me perdoasse.
Ironia, ver-me! Eu que sempre a via na vereda, esperando, maldito mito!, o regresso de um espírito!

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

A primeira rosa

 

DOMINGO, 19 DE AGOSTO DE 2007



Coração frio que vês a noite
pela fresta que guarda a morte
na terra molhada de lágrimas
onde o vento assobia fraco
e a chuva cai de mansinho
canção dolente sem chama
do teu chorar soluçante
na tumba que guarda a morte.

Roubaram-me o coração
de um anjo com olhar triste
no dia em que rosas brancas
deitaram para te esquecer.
Rosas brancas  meu amor
para ti nunca as cortei;
rosas vermelhas  paixão
todos os dias as colho
e se a outras mulheres entrego
guardo comigo a mais bela
para um dia te oferecer.


Os vermes comeram-te a carne
já não tens mãos de veludo
nem corpo de adolescente.
Mas à força de sonhar
nesta ilha onde te espero
e abraço a solidão...
um dia vou encontrar-te
rosa vermelha em botão
as brancas são para a morte
e a morte essa “matei-a”
dando de comer aos vermes
a carne e as rosas brancas.

 A saudade e a rosa em botão
são de ti o que me resta...