Extraído de: A Esfinge tinha uma heroína
«Dianética?, afinal quem vai fazer dianética comigo?»
«Você parou...»
«E ia caindo do banco!»«Não viu que lhe trocaram o banco?»
«A mente reativa é que teve a culpa.»
«Ionesco?»
«Não. Desligaram a mente analítica e disseram-me: desce como de costume.»
«Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. Vou ter juízo. Deixo a alquimia e regresso às origens. Chegou o fim do tempo.»
«Astrologia?»
«O corpo é que paga.»
«Não entendo.»
«Passa-se o mesmo comigo.»
«Mas nós estamos na mesma onda! Foste tu que disseste uma vez que estávamos na mesma onda. Lembras-te?»
«Prefiro não me lembrar e dizer que não entendo. Afinal quem tirou o banco?»
«Ninguém tirou o banco. O chão é que estava um pouco mais longe. Só isso. Uma questão de erro da mente analítica. O chão estava mais longe. Não se aleijou?»
«Sou o homem de borracha. Saí sem uma beliscadura depois de uma queda de anos-luz!»
«E eu a Branca de Neve...»
«Muito prazer. Acredita. Foi mesmo milagre. Tenho que substituir a palavra por outra. Sorte. Fatalidade. Pode ser destino.»
«Como?»
«O chão é que podia ter aberto a boca... Destino é sorte. Boa ou má sorte.»
«Deixemos o Ionesco na paz eterna dos seus torrões. E olhe... desculpe não ter aparecido naquele dia. É que não foi possível. Borrei a pintura...»
«Mas se não apareceste... ou melhor: se chegaste tarde, então nunca mais chegaste!»
«Onde ouvi essa?»
«Foi na mente reativa, quando trocaram o banco ou o chão fugiu para baixo. A mente reativa regista tudo, sabes? É pena que ela seja tão desorganizada. Tem um poder infinito.»
«Bem, vamos ao que interessa.»
«A iniciação.»
«O bloqueio.»
«Você disse que queria ser iniciado.»
«O artista é que falou nisso e frisou que já não valia a pena. A propósito: ele entrou no teu laboratório secreto. Diz-me que entrou, que domina todos os tubos de ensaio e que já não posso levar ao fogo o cadinho da paixão. Diz-me que não estou enganado, que os ácidos reagiram docemente com as bases e daí resultou um pó branco que não vou tomar. O pó. O outro pó que estava embrulhado em prata. Foste tu, não foste?»
«Fui.»
«Porquê?»
«Porque estamos na mesma onda!»
«Ora essa. Nunca estivemos. Estou em ondas curtas. E tu? Talvez lá. Muito longe...»
«No passado?»
«Sim. Vieste do passado remoto e foste tragada pelo presente. De uma vez para sempre te digo. Não resultou. Sabes bem que não resultou.»
«Mas então existi!»
«Se estás a rebuscar nas cinzas frias do comboio do futuro, como podes saber que exististe?»
«Não o entendo, Mário. O comboio do futuro já está em cinzas antes de chegarmos lá? Então não tenho futuro. Você chama por mim e depois não me quer. Diz que também não tive passado. Esquece o que fomos e diz que não pode haver futuro! Mas eu digo que sim. Afinal, sou tudo. O passado, o presente e o futuro.»
«Desengana-te. És a Esfinge e não tens futuro. Fizeste viagens.»
«Pergunte à Esfinge quem sou. Quando ela está assustada, o que faz?»
«Foge de mim como o diabo foge da cruz. Mas tu é que tens negócios com ele. Vi-te com uma nota na mão depois de dares o pacote do pó ao alemão.»
«Inevitavelmente fujo. E sabe porquê?»
«Diz.»
«Não quero fazer-lhe mal.»
«Mal por mal... Deixa isso para lá. Olha uma coisa... Sabes saltar?»
«...?»
«Deduzo que não. Dou cambalhotas à retaguarda. Era a minha especialidade na tropa. A propósito: já ouviste falar na Borsic?»
«Nesse tempo era a gaivota...»
«E no copo que rodopiava no snack?»
«Com a Patrícia, distante, em frente ao Mário. Não. Não era a Patrícia.»
«Vejo que te lembras. Sabes uma coisa?, havia bancos altos junto ao balcão.»
«E as gaivotas picavam para a rebentação das ondas.»
«O céu estava azul.»
«Os dias é que eram azuis!»
«E longos. Longos dias azuis.»
«Ainda são longos?»
«Sim. Só a eternidade é mais longa!»
«Gostava de voltar um dia ao snack e ver com os meus olhos se o Mário ainda lá está a ver as gaivotas planaram no céu. À espera. À espera da Patrícia. Um dia, a cadeira na sua frente ficou vazia. E a Patrícia nunca mais apareceu.»
«É verdade. Mas a Manuela existiu! Sim, existiu. E existe. E existirá para todo o sempre.»
«Como assim?»
«Eu sei.»
«Tem provas ou é só pura intuição?»
«Só sei que sei.»
«Mas estamos a falar sem nos conhecermos. É talvez a força do hábito. Quanto mais falo consigo, menos o conheço. Não sei se você é o Mário dos negócios fracassados, como aquele dos caracóis que tinha tudo para andar, ou o outro que se esconde atrás de si. Feitas as contas, são três.»
«Eu também não te conheço. A quem devo a honra?»
«Chamo-me Esfinge.»
«Esfinge?»
«Sim. E confesso que já fui do azul.»
«Foste do azul! Estranha forma de te apresentares. Só uma mulher foi do azul e agora já nem sequer pode sonhar. Nem consegue atravessar desertos vermelhos. Vive perdida na noite e dizem que chora. Mas nunca a ouvi chorar. Essa, sim, foi do azul. Ficou no passado remoto. Para sempre. Ninguém mais poderá ser do azul, entendes?»
«Se é assim, nem sequer existo ou também fiquei no passado remoto. Temos que lá ir. Deve ser bom encontrar o passado. Poder corrigir muita coisa que resultou mal. Poder evitar as guerras que ceifaram muitas vidas. A fúria dos terramotos.»
«Os terramotos, não são para aqui chamados. São fenómenos extremos da Natureza. Terríveis. Inevitáveis. Só os destinos podem ser alterados. O teu nascimento, por exemplo...»
«Não devia ter nascido.»
«Porquê?»
«Por causa da maldição do pó branco!»
«Olha, podemos atrasar o teu nascimento. Basta um segundo e já não encontras o artista que te levou nas viagens que foram a tua perdição.»
«Faz isso por mim?»
«Por ti faço tudo. Só que há um problema...»
«Que problema? Isto ia tão bem!»
«Estamos em passados distintos.»
«E agora?»
«Abranda a velocidade da tua onda para que a minha a agarre.»
«Assim?»
«Está bom. Quando disser três, mergulhas.»
«Calçada?»
«tanto faz. Talvez seja melhor voarmos. Não estamos a sonhar? Abre os braços. Isso. Não tenhas medo. Não vês que estamos a sonhar?»
«Tenho medo de acordar. Este sonho é demasiado belo! Voar!, quem me dera saber voar! Ser livre. Não ter amarras. Nem fantasmas que sugam a vida. Voar! Foi sempre o meu sonho... Pronto, já abri os braços. Se calhar, quer agarrar-me. Conheço bem o truque. Os homens são todos iguais. Envolventes. Fatalmente sedutores.»
«Sabes muito bem que o pó que me deste não era a minha “heroína”. Como posso agarrar-te se continuamos em ondas diferentes e se não te vejo nem tu me vês? Confia em mim. Vá. Lança-te no espaço quando contar até três.»
«Tenho medo. Pode ser mais uma viagem!»
«Eu não faço viagens, bem sabes. Aqui não há alucinogénios. Mas tenho outra ideia...»
«Outra ideia?»
«Uma ideia brilhante.»
«E?»
«Apanha aquela gaivota que está a olhar para nós.»
«Não vejo a gaivota!»
«Faz de conta que vês. No azul...»
«Ah!, no azul... Agora recordo-me. As tuas gaivotas só voavam no azul. Já a agarrei. Estou a voar alto. É maravilhoso voar assim!»
«Olha...»
«Sim?»
«Já estamos no passado.»
«No mesmo passado?»
«Na mesma onda. Não me vês? Eu vejo-te. Dá-me a mão. Assim... Gosto do contacto da tua pele macia. Tira-me do sério. Os olhos... deixa que os recorde. Foi há tanto tempo!»
«De que cor eram os olhos de Patrícia?»
«Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.»
«Oh!»
«Mas tu não és a Patrícia!»
«Chamo-me Esfinge...»
«Profanaste o meu laboratório secreto! E és ninfomaníaca.»
«Que mal faz?»
«Muito. Toda a diferença. A infidelidade é o teu cartão de visita. Larga-me a mão!»
«Tenho medo! O passado vai tragar-me. Está tudo escuro. Não me deixe!»
«É tarde. Já não posso voltar atrás para salvar-te. Lamento. Fica esta mancha na minha vida.»
«Sinto frio. As ruas estão desertas. Não oiço ruídos. Não há ninguém no passado. Sinto tanto frio!»
«Fresco. Está fresco.»
«Fresco?»
«Tenho a sensação que já te conheci, mas também há miragens nestas ruas que já não existem. Só o futuro pode trazer de volta as ruas. Onde procurar-te? Queria ver-te. Nem que fosse durante um segundo...»
«Está a falar para outra mulher.Vai fazer-me mal?»
«Mal? Não tenhas medo. Estamos no passado e ainda não nasceste. Eu já ando por aí. Vagueando. Algures. Se me encontrar, posso alterar o destino.»
«Algures é finalidade. O nosso destino?»
«Não sei. Chegou o momento. Vês aquele boqueirão?»
«Vai tragar-nos!»
«Não tenhas medo. Estou aqui. Ao teu lado.»
«Que sensação estranha! Agora já não sou a Esfinge. Perdi a identidade e estou a fundir-me com alguém, num orgasmo longo... É uma sensação tão estranha!»
«Entrámos no boqueirão. Estás sob o efeito da queda. A queda é longa. Talvez eterna.»
«Eu também sou eterna.»
«A morte é que é eterna...»
«Está escuro. É assim que se morre?
«Não sei. Nunca morri. Pelo menos não me lembro de ter morrido. Tu é que já morreste uma vez.»
«Engana-se, sou a Esfinge. Também nunca morri. Disse-lhe uma vez que era eterna. Não se lembra?
«Tretas. Julgavas que tinha acreditado? Sabes uma coisa?»
«Sim?»
«Chegámos e não consegui encontrar-te.»
«E agora...?»
«Ando à minha procura pelos caminhos que já trilhei.»
«Já não sei quem sou! Ajude-me!»
«Vou ajudar-te... Lembras-te do pó branco maldito?»
«Que pó? Não sei de que pó fala. Tenho frio! Muito frio! Estou cega! Cega! É assim que...»
«...se morre?»
«Não o vejo. Onde está?»
«Estou aqui, a teu lado. Mas é tarde. Já não vale a pena.»
«Mas quem sou eu?»
«Eras um dos meus destinos. Ponto final.»
Os comboios passam apinhados de destinos. Espero ainda pelo meu. Um dia poderei talvez escolher outro rumo. Na órbita do acontecer há vestígios de esperança. Ao longe. Muito ao longe. No sítio para onde voam as gaivotas que já não picam para a rebentação.
Ela chamava-se Ana, mas para mim sempre a vi como a Esfinge. Quando a conheci, já estava possuída pela magia negra do pó branco e sonhava com as viagens, das quais regressava cada vez com menos resistências. Era inevitável um dia ser tragada para sempre. Podia tê-la ajudado e resgatado de uma das suas viagens. Preferi ignorar a tragédia daquela mulher esfíngica que uma vez me disse que queria regressar às origens e não conseguiu. Foi mais um nota negativa para sobrecarregar o meu karma por não ter querido ajudá-la enquanto tinha o tempo comigo. Paciência, enquanto puder vou andando por cá...