quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A última onda

 


Hoje a minha vida é uma onda que se levanta e não para de avançar, crescendo até se esbater a beijar docemente as areias da praia onde tu estavas, miragem de um sonho que nasceu na onda que ao largo se levantou, galgando barreiras impossíveis.
Na minha vida houve altos e baixos ondas que se levantaram sem azimute e outras que prometeram a eternidade, mas logo mergulharam no lago adormecido com monstros devorando no silêncio o sonho das praias proibidas.
Um dia virá a última onda romper um delta de novos sonhos e a minha vida será essa onda a crescer com o azimute da esperança até beijar as areias douradas ao longo da praia deserta onde tu estiveste ontem.

sábado, 19 de outubro de 2024

Cartas de amor

  


Hoje em dia não é comum um apaixonado daqueles do catálogo de Lineu escrever uma carta de amor. Os tempos são outros. De qualquer forma, estou fora do contexto e só por isso aqui estou a escrever-te no aconchego da minha solidão. Não é a primeira carta que te escrevo. Foram muitas as cartas que trocámos. Talvez esta seja a última. Poemas, esses escrevi alguns só para ti. Talvez para nada.  Nunca os lerás. Só nós sabemos porquê. Segredo absoluto. Mas, apesar das entrelinhas,   resolvi escrever a carta. E não é uma carta vulgar porque as cartas vulgares têm sempre conteúdos e objetivos vulgares. Esta é diferente. Porquê? Porque é a última carta? Mas que espécie de carta posso escrever para ti, quando sei antecipadamente que vai ser lida pelos poucos todos que acederem a este espaço e talvez nunca seja lida por ti?
O mais estranho é que o nosso tempo já foi esmagado há muito pelas suas próprias engrenagens, pois anda sempre para a frente e nada há  que o faça parar, muito menos  pressioná-lo para voltar atrás. Eu fui direito ao futuro nos braços do tempo e tu ficaste parada.  Os sonhos morreram há muito e, portanto, seria lógico admitir que já não te amo ou que te esqueci. Então, porque estou a escrever-te esta carta, se a tua órbita do acontecer deixou de cruzar-se com a minha e de outro qualquer? Só posso admitir ser uma carta que peca por partir atrasada, não porque me atrasei, não porque me esqueci dela no fundo de uma gaveta, daquelas que se abrem quando se procura outra coisa. Não interessa saber a verdade. O cerne da questão não reside na verdade, pois lança a dúvida e ficamos na mesma. É totalmente diferente. Só quero descobrir o motivo porque escrevo agora, se já não posso amar-te como amei ontem. E não explico mais. Apenas  lanço no ar uma pergunta cuja resposta  sei há muito. Porquê? Porque partiste sem me avisares (1)?

Amei-te ou amo-te. Tanto faz para o caso Não devia ter feito esta confissão dúbia. Mas não tem importância porque não vais tirar benefício. O tempo da mulher única acabou. Esse tempo que era só nosso e que agora nada vale. Só em pensamento. Pronto. Abri a ponta do véu. Só a ponta. Se o tempo ainda não apagou a tua imagem na minha memória, fica cá comigo. Ponto final. 

Transfiguração...
Sabes como te vejo sempre? É terrível, mas tenho que dizer-te...
Sozinha, deitada na cama, de olhos postos no teto, sonhando acordada com um amor que tarda em voltar. E esse amor não pode vir de mim. Contudo, estou a escrever para ti. Parece não ter lógica. Não tem mesmo. Mas a vida é assim. Um dia, abriste muito os braços e julguei que era para mim. Enganei-me. Passaste por mim naquele campo aberto pintado pelo rubro das papoilas. E assim, perdi-te. Foste para o teu suposto príncipe encantado, um tal que afinal teimou em viver protegido pela neblina das indefinições. E foi assim. Nunca saberás se ainda posso ter amor por ti, pelos teus olhos gaiatos, provocantes, de gazela espantada. Pela tua voz doce que não se apagou de todo nos meus sonhos. E sabes uma coisa? Não sabes, nem saberás. É lógico. E como jamais vais ler esta carta, digo e afirmo que te tenho ainda  no pensamento. Num modo esbatido. 
É certo que te amei. E tu? Nunca me disseste, como não te disse abertamente gostar de saber o que nunca me disseste. Tenho a certeza que gostaste sempre de ser amada. E foi esse um dos meus males. Mas, paciência. Será outro o caminho desta carta. Talvez vá perder-se no fundo de uma gaveta. Ou tornar-se em cinza. Ou até talvez nunca  tenha escrito a carta e apenas pensado. Não sei. Agora, é tudo muito nebuloso.

Gostava de voltar a ver-te um dia. Ultrapassaste os meus anos por causa do teu tempo que acelerou. Quase parei depois de ter corrido para o horizonte de eventos de um buraco negro, à espera de ver-te, num derradeiro relance, antes de mergulhar no nada. 
Não posso chegar a ti. Apenas sonhar e ver que continuas bonita como sempre foste, mesmo depois dos anos terem passado. Que continuas provocante no andar. E sabes uma coisa? Não sabes. Nunca te disse. Eras um fruto apetecido. Daqueles sumarentos que apetecia apertar.Um morango maduro, por exemplo, que teria gostado  degustar. Muito. Nem imagino o orgasmo do sabor...

Parece que estou a ver-te sorrir e a encolher os ombros, talvez resignada, porque também não estás a ver o meu sorriso e a ouvir que não respondia por mim quando me provocavas com o teu encanto.

Que parvo fui naquele dia em não saber aproveitar de todo o momento de fraqueza em que te entregaste (2)! Lembras-te? Não te lembras tu de outra coisa. Esteve por pouco o acontecer e talvez tenha acontecido noutro universo paralelo. Mas deixemo-nos de fantasias. Fica a dúvida. Melhor ainda, um segredo que ambos guardámos no futuro baú do futuro onde estão escondidas as nossas recordações.

Esta carta já vai longa. Vou confessar-te uma coisa. Não contes a ninguém. Queria escrever uma carta de amor copiada de outra que encontrei esquecida lá no fundo muito fundo de uma gaveta. Não o fiz. Era e não era para ti. Foi uma boa decisão.
Olha, responde na volta do correio a esta carta que não irás receber. Nunca mais me esqueças, mas continua a fugir de mim, como sempre o fizeste porque eu te pedi. E, por favor, olha para trás. Tal como pedi naquele poema. Como não podes responder, fica aqui dito que só eu sei quanto te amei e nunca, mesmo nunca, te disse.
Vem ter comigo, nem que seja em sonhos. Estou à tua espera. Talvez que um dia nos encontremos ao crepúsculo da mesma lareira até o último tição se apagar de vez. Tinha muita coisa para dizer-te e não disse nada. Agora é tarde. Não faz mal. Até porque nunca vais ler esta carta, onde talvez minta ao escrever que te amo, que sempre te amei. 
Bla bla bla. 

Fiz borrada naquele fim de tarde quando li a outra um poema dedicado a ti. Efeito do vinho branco que eu e ela bebemos. Mas não peço perdão. Porquê? Só o faço quando agradeceres as "utopias" que te dediquei. Foram todas para ti e tu fingiste que julgavas que não eram. Gostavas dos meus poemas mas interiorizaste que era só poesia. Nem perguntaste para quem eram. Ficámos em meias tintas. O ideal para me usares como usaste quando encobri aquela falta a uma reunião quando os teus olhos suplicantes me hipnotizaram. A tua dissertação que passei no velhinho Word. O meu livro de poemas e a cassete que escondeste da tua irmã. Muito mais porras que não interessa trazer para aqui. Mas não foram provas de amor. Queria apenas tirar vantagens. Pressionar-te. Fazer-te pensar. "Tão bom homem que é! Não é justo o que estou a fazer, mas preciso dele ainda". E outra vez bla bla bla com esses teus olhos suplicantes a mentirem. Pronto, usaste-me e descartaste-me. A Odete tinha razão. O quê?  Ah...!, o punhal. Confessa que ela nos atraiçoou. Se fui para a cama com ela? Não podes ver o meu sorriso. Assim, fica na dúvida se foi bom teres sido preterida. Bom para quem? 
Que fazes neste momento? Uma referência. Por exemplo,são cinco da tarde e é domingo. Chega? Não tem importância saber onde estás porque não vais ler esta carta, conforme já repeti várias vezes. Mesmo que lesses, ainda não confessei, do fundo do coração que te amo. Amava-te, sim. Agora não sei. A outra, esqueci, Partiu para o constelado do céu e nunca mais quis saber de mim. 

Aquele dia que te encontrei no Centro Comercial foi muito bom, mesmo que nada de especial se tivesse passado. O que aconteceu fica entre nós. Podes mentir que eu respondo com outra mentira. Depois, um ponto a meu favor. Conhecia-te há pouco mais de uma semana e fiquei surpreso quando mostraste o teu desagrado por eu dizer ao Alfredo que tinha estado contigo no Centro. Desejo de secretismo apenas, ou ele fez algum comentário que não gostaste de ouvir? 

 Bom, queria dizer ainda... Mas esta carta já vai longa. Provavelmente vou escrever outra mesmo que não tenhas lido esta. Mentira. Esta carta vai ser, definitivamente, um exemplar único e não repetido. Como no caso do livro de poemas que te ofereci. Uma edição de dois exemplares. Um para mim e outro para ti. 
Para acabar, faço uma pergunta: gostaste de ser amada?
E mais outra: onde moras desde aquele dia em que fugiste?
Um beijo sem retorno.

Mário.

P.S. Afinal é  só uma carta que estou a escrever na solidão do meu quarto?
 Sei que não a vais ler, porque estás , do lado errado da vida. 
Como estavas bonita naquela noite do cinema!
Um beijo quente no teu rosto gélido.
António

(1)   Manuela 

(2)   Adeus, utopia