Neste momento de estagnação instala-se o silêncio das palavras para abafar o ruído dos sentimentos. A mordaça é um torniquete. Aperta, aperta. Esmaga os sentimentos e as palavras e chama ao palco o inevitável tabuleiro de xadrez. Mas o rei está à deriva. Os cavalos escoiceiam, espantados, em todas as direções. As torres ameaçam ruir. Os bispos, desesperados, usam os peões como um muro de proibição. Enfim, instala-se a anarquia. Nem um simples xeque faz-me sair do impasse da estagnação. Posso propor o empate, mas está contra os meus princípios. Ou perco ou ganho este paraíso sem maçãs tentadoras nem horizontes abençoados pela brisa suave que vem das distâncias de onde emana a magia da seiva universal que nos pode unir, transfigurar, rasgar uma porta por onde surja a força mítica do amor.
E ela?
Está à espera de mais coragem da minha parte. Não arrisca. O ónus da despesa terá que ser todo meu e não sei como se vai processar o futuro de cada um de nós. Há um abismo enorme a separar-nos. Bem sei. E ela sabia da sua existência. Contribuiu para esta fatalidade. Foi conivente. Quando teve o que queria, afastou-se. Agora esconde-se na sua vida subterrânea.
Escuto o silêncio das suas palavras e confirmo que a resposta não fugiu muito das previsões. Não quer arriscar mesmo que um seu sorriso lânguido me faça pensar o contrário. Mais um dos muitos fios de esperança com que ela me foi manietando. E assim renovou-se o tal momento ideal que há muito procuro trazer de novo à luz do dia. O sonho purificado de um dia cinzento tornado azul. Porque azul é o meu mundo. Sempre foi e continuará a ser. É isso que me dá força para suportar as viagens pelo negrume das minhas noites sem luar que se interrompem ao amanhecer. Sou como um náufrago que sobreviveu a mais que uma tempestade.
Ah!, sinto-me bem acordado. Vejo uma mesa comprida e muitas cadeiras em frente. Vai começar um debate. Mas as cadeiras estão vazias e desarrumadas. Talvez que o debate já tenha acabado. Ou talvez que eu esteja à espera das pessoas que nunca chegarão. O melhor é sentar-me. Assim. Virado para as cadeiras. Tenho que habituar-me a enfrentar as multidões. Uma amiga disse-me um dia que estava a ver em mim um Pastor. Não é verdade. Nunca conseguirei. Num momento, a inspiração apaga-se quando vejo multidões. Que vou dizer? Que hoje sou um lago de bonança onde os barcos podem navegar sem perigo, e amanhã um mar alteroso que leva os mesmos barcos para o fundo?
Entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu na minha direção. Olho em volta e verifico que só estamos nós. Não há dúvida que ela parece conhecer-me. Então, também devo sorrir. É melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não, vou pôr uma interrogação no olhar, não vá haver outra pessoa na sala, apesar da verificação meticulosa que fiz.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Os cabelos são castanhos, compridos. Passou no exame preliminar. Mas que faço eu numa sala que tem muitas cadeiras vazias? Não mostro a mínima admiração. Parece que estava à sua espera. Mas como...?
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
Mensagens. Recados de um diálogo trazido pelo éter. Quero dizer-lhe qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço!
Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte.
«Eu crepúsculo e tu viçosa...»
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e aqueles olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as nossas mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Quando as folhas das árvores amareleceram e desistiram de viver, é que dei conta que a tinha perdido para sempre. Agora é tarde. Muito tarde.
Mas dizem que a ouvem chorar!
A jovem continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Que jovem tão sedutora!
Talvez tivesse entrado na sala errada...
Pego na sua mão macia e ela fica à espera. Que vou fazer? Acariciar a mão da jovem? Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração.
Nesse dia perdi uma coisa muito importante a seguir ao momento em que me estendeu a palma da mão e lhe disse que era uma mulher ponderada, cuidadosa, carente e muitas outras coisas. Perdi porque não fui fiel e era essa a virtude que ela mais apreciava. Não fui fiel aos meus sentimentos. Não falei no segredo que os olhares guardaram quando se cruzaram pela primeira vez. Não usei a porta que me abriu quando o seu tom de voz desceu até soar aos meus ouvidos como o apelo de uma mulher carente e solitária. Senti que se rendia a uma atração quase fatal. Eu próprio andava perdido em meandros de paixão e de receio. Tudo podia acontecer. Era só um gesto. Um aperto mais forte da sua mão frágil e o mundo seria meu. Mas não sei o que aconteceu. Preferi assumir o controlo. Venceu o abismo das idades. Inconscientemente foi isso. Nesse dia fugi para lá da coragem. Continuei na busca de adjetivos que nada tinham a ver com o apelo da sua voz ofegante, com o momento mágico que estava a acontecer. Preferi descobrir o passado e o futuro nas linhas da sua mão, em vez de enfrentar o presente bem vivo ao meu lado.
Agora o sol encobriu-se. Sinto o frio gélido da solidão. Está uma nuvem espessa a passar. Lembra um pé alongado que se alarga na zona em que esconde o sol. Parece um botão de rosa. Mas não. As rosas não são cinzentas.
Li na sua mão sentido da responsabilidade, secretismo, timidez. Gostava da Maria assim. Mas a nuvem ofuscou o sol no momento fatal em que peguei na sua mão e ditei o futuro que não desejava. Aos poucos, foi-se distanciando. Fatalmente.
(Até amanhã, utopia)
«Não podem acontecer os nossos desejos. Porquê? Porque é proibido. Os bispos não deixam, as torres estão quase a tombar. Os cavalos galopam para longe. Que esperança nos resta? A amizade?»
Ela partiu. Mas eu teimo em ficar, apesar de saber dos sinais que virão. Para mim jogo não está perdido, mesmo com o rei à deriva, longe da rainha que acena impossíveis, misteriosa, na distância. Pudesse abraçá-la uma só vez. Tê-la minha. A rainha do outro lado do tabuleiro. Ainda posso abrir uma porta no insondável muro da amizade e deixar o amor beijar os seus olhos quase tão enigmáticos como os da Esfinge que foi tragada pela viagem com o pó branco.
Estou cercado, apesar das palavras feitas aviso conspirarem a meu favor. Mas há uma muralha muito forte que continua a tolher os meus sentimentos.
Ela escondeu o desejo, mas a doçura da voz está sempre a traí-la. Continua muito perto, mas a acenar na distância. O seu corcel preto galopa em círculos largos, como se estivesse à espera. É isso. Só tenho uma hipótese. Deitar abaixo os bispos, romper entre os peões, montar o corcel branco da coragem e procurá-la pela enésima vez.
Sobreposição de imagens. A história do corcel da coragem, que não consegui montar, foi noutro tempo. Agora a coragem está presente, mas os cavalos brancos foram abatidos. Hesito. De qualquer forma, volto a ser um perdedor. Tenho a coragem do meu lado, mas sinto o peso do crepúsculo denso. Os meus domínios estão destinados. Só me sinto seguro na prisão do tabuleiro de peças que, aliás, sempre manipulei. Cá fora, não sei como vai ser, nem sei para onde ir. E mesmo que saiba, tanto faz. Já nada me motiva. Só me resta recordar o segredo das areias douradas beijadas pela onda feita em espuma, a poesia do mundo virtual onde tudo o que era possível e impossível aconteceu, a ternura efémera que se aconchegou num amor desesperado e trouxe a esperança que ganhou força ao ser abençoada pela energia divina que abriu horizontes, dia após dia sempre em crescendo, tal feitiço da lua que nos aprisionou nos seus finíssimos, invisíveis e milagrosos fios de prata. Tudo isto aconteceu e não aconteceu.
Deixei-me levar pelas nuvens do sonho até que um dia alguém quebrou o encanto e disse-me, com frieza:
«Volta à Terra, Mário!»
Como foi que te perdi?
Deus é Omnipotente e está sempre presente e atento às preces daqueles que acreditam no milagre do amanhã que vai acontecer, até porque há um enigma que continua a unir-nos, estando afastados ao mesmo tempo. A sua sede de amor nunca foi igual à minha sede de amor. Somos iguais na diferença. Ilhas próximas. Ilhas. Apenas. Mais nada que ilhas.
Rainha... onde estás?
Nunca serei o teu deus. Só Ele, Energia, ou o que Lhe quisermos chamar, vai ou não vai usar a Sua força para nos fundir num abraço final. Vou continuar a lutar até que se abra uma porta ampla, com vistas para os jardins de árvores frondosas que ontem estavam invisíveis. Depois, é muito simples. Ouvirá o meu desejo e serei transformado simbolicamente numa árvore que tu escolherás para abraçar.
Já sei que devo descer à Terra, embora não como um anjo a cair porque foi banido dos jardins do Senhor. És tu que dizes. Mas quem és tu?, para não me deixares mergulhar no espaço astral que é a tua morada e onde é tudo possível, inclusivamente, ter-te, amar-te e ser amado?
Se ontem não fui amado, pelo menos ofereceste-me a esperança vã e só por isso prometo que não vou partir para esquecer-te.
A vida é como é. Cruel. Por vezes tira-nos tudo e dá-nos tudo o que é nada. Mesmo assim prefiro soltar os pés do chão, partir à tua procura para esgrimirmos mais uma vez o silêncio enigmático e mágico das palavras, convencer-te que és capaz de amar-me, embora estivesse sempre a perder-te e a encontrar-te.
Para chegar a ti só preciso de uma pequena ajuda.
Ela partiu. Mas eu teimo em ficar, apesar de saber dos sinais que virão. Para mim jogo não está perdido, mesmo com o rei à deriva, longe da rainha que acena impossíveis, misteriosa, na distância. Pudesse abraçá-la uma só vez. Tê-la minha. A rainha do outro lado do tabuleiro. Ainda posso abrir uma porta no insondável muro da amizade e deixar o amor beijar os seus olhos quase tão enigmáticos como os da Esfinge que foi tragada pela viagem com o pó branco.
Estou cercado, apesar das palavras feitas aviso conspirarem a meu favor. Mas há uma muralha muito forte que continua a tolher os meus sentimentos.
Ela escondeu o desejo, mas a doçura da voz está sempre a traí-la. Continua muito perto, mas a acenar na distância. O seu corcel preto galopa em círculos largos, como se estivesse à espera. É isso. Só tenho uma hipótese. Deitar abaixo os bispos, romper entre os peões, montar o corcel branco da coragem e procurá-la pela enésima vez.
Sobreposição de imagens. A história do corcel da coragem, que não consegui montar, foi noutro tempo. Agora a coragem está presente, mas os cavalos brancos foram abatidos. Hesito. De qualquer forma, volto a ser um perdedor. Tenho a coragem do meu lado, mas sinto o peso do crepúsculo denso. Os meus domínios estão destinados. Só me sinto seguro na prisão do tabuleiro de peças que, aliás, sempre manipulei. Cá fora, não sei como vai ser, nem sei para onde ir. E mesmo que saiba, tanto faz. Já nada me motiva. Só me resta recordar o segredo das areias douradas beijadas pela onda feita em espuma, a poesia do mundo virtual onde tudo o que era possível e impossível aconteceu, a ternura efémera que se aconchegou num amor desesperado e trouxe a esperança que ganhou força ao ser abençoada pela energia divina que abriu horizontes, dia após dia sempre em crescendo, tal feitiço da lua que nos aprisionou nos seus finíssimos, invisíveis e milagrosos fios de prata. Tudo isto aconteceu e não aconteceu.
Deixei-me levar pelas nuvens do sonho até que um dia alguém quebrou o encanto e disse-me, com frieza:
«Volta à Terra, Mário!»
Como foi que te perdi?
Deus é Omnipotente e está sempre presente e atento às preces daqueles que acreditam no milagre do amanhã que vai acontecer, até porque há um enigma que continua a unir-nos, estando afastados ao mesmo tempo. A sua sede de amor nunca foi igual à minha sede de amor. Somos iguais na diferença. Ilhas próximas. Ilhas. Apenas. Mais nada que ilhas.
Rainha... onde estás?
Nunca serei o teu deus. Só Ele, Energia, ou o que Lhe quisermos chamar, vai ou não vai usar a Sua força para nos fundir num abraço final. Vou continuar a lutar até que se abra uma porta ampla, com vistas para os jardins de árvores frondosas que ontem estavam invisíveis. Depois, é muito simples. Ouvirá o meu desejo e serei transformado simbolicamente numa árvore que tu escolherás para abraçar.
Já sei que devo descer à Terra, embora não como um anjo a cair porque foi banido dos jardins do Senhor. És tu que dizes. Mas quem és tu?, para não me deixares mergulhar no espaço astral que é a tua morada e onde é tudo possível, inclusivamente, ter-te, amar-te e ser amado?
Se ontem não fui amado, pelo menos ofereceste-me a esperança vã e só por isso prometo que não vou partir para esquecer-te.
A vida é como é. Cruel. Por vezes tira-nos tudo e dá-nos tudo o que é nada. Mesmo assim prefiro soltar os pés do chão, partir à tua procura para esgrimirmos mais uma vez o silêncio enigmático e mágico das palavras, convencer-te que és capaz de amar-me, embora estivesse sempre a perder-te e a encontrar-te.
Para chegar a ti só preciso de uma pequena ajuda.
Ah!, se fosse possível aquele momento voltar!
Não sei se Ele está a ouvir-me. Há silêncio nas alturas. Mais uma vez.
Se ao menos Ele me conhecesse! Infelizmente só eu falo com Ele.
Se ao menos Ele me conhecesse! Infelizmente só eu falo com Ele.
